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Cinema festival de cannes

Cannes chega ao fim marcado pelo cinismo e com Brasil longe da festa

O desaparecimento do país é sintoma do descalabro da cruzada anticultural que o governo de Jair Bolsonaro manifesta

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Cannes (França)

A trama de "Nostalgia", filme do italiano Mario Martone que competiu no Festival de Cannes deste ano, traz um sujeito que volta a Nápoles depois de 40 anos. Ele vaga pelas ruelas e percebe que o tempo parou, embora nem ele nem sua cidade natal sejam mais os mesmos.

O estranhamento do personagem traduz a experiência do que foi esta edição do festival —a primeira após uma pandemia ter trancado o planeta inteiro em casa e forçado o fechamento definitivo de milhares de salas de cinema mundo afora e também a primeira após uma guerra ter ultrapassado as fronteiras da Europa desde 1945.

Três anos atrás, o cineasta sul-coreano Bong Joon-ho saía de Cannes consagrado com a Palma de Ouro por "Parasita", primeiro feito de um filme que foi faturando troféus até conquistar um inédito Oscar de melhor filme para uma produção não falada em inglês. O mundo era outro.

Song Kang-ho (à esq.), que venceu o prêmio de melhor ator em Cannes por 'Broker', Ruben Ostlund (centro), diretor do filme ganhador da Palma de Ouro, 'Triangle of Sadness', e Vincent Lindon, presidente do júri do festival
Song Kang-ho, à esquerda, que venceu o prêmio de melhor ator em Cannes por 'Broker', Ruben Ostlund, no centro, diretor do filme ganhador da Palma de Ouro, 'Triangle of Sadness', e Vincent Lindon, presidente do júri do festival - Sarah Meyssonnier/Reuters

Dessa forma, é curioso o exercício de interpretar o que quis dizer a safra de produções que estiveram em cartaz na mostra de cinema mais importante do calendário.

A Covid, só apareceu em um dos 21 enredos que competiram à Palma de Ouro. Foi em "Stars at Noon", o thriller empapado de suor dirigido por Claire Denis. A cineasta francesa adaptou um livro ambientado na Nicarágua de 1984 para o país dos dias de hoje. Entre uma transa e outra —e são várias— da jornalista interpretada por Margaret Qualley, vemos as onipresentes máscaras descartáveis. Até teste PCR ela chega a fazer, para cruzar a fronteira com a Costa Rica.

Se a pandemia marcou presença tímida nos enredos, o mesmo não se pode dizer em relação ao tema do cinismo, que pipocou em boa parte dos longas americanos e europeus da competição, quase como um reflexo da estafa da elite do mundo que, em meio à grita de movimentos identitários, posa de benfeitora sem abrir mão dos próprios privilégios.

Não à toa, quem foi coroado com a Palma de Ouro neste ano foi justamente o rei do cinismo, o sueco Ruben Ösltund, que quatro anos atrás, com "The Square", já tinha comovido Cannes com sua sucessão de esquetes que disparam farpas ao mundo dos privilegiados como se quisesse sempre dizer que o mundo é podre, que não há solução e ponto final.

Com "Triangle of Sadness", ele senta ainda mais o dedo na sua metralhadora e diz adeus a qualquer resquício de sutileza para desancar a futilidade da moda, dos influenciadores digitais e dos bilionários. A única resposta do cineasta à concentração de riqueza ficou por conta de uma sequência tão sádica e escatológica que quase faz o espectador ficar do lado dos ricaços.

"Armageddon Time", de James Gray, examinou relações de classe e raça a partir da amizade entre um garoto branco e um negro na Nova York do início dos anos 1980. A família do primeiro se porta como progressista, mas deixa escapar seu racismo velado.

Em "Pacifiction", um dos títulos mais cinematograficamente ambiciosos do páreo, Albert Serra abordou o colonialismo a partir das relações de um oficial francês que passa tardes preguiçosas no Taiti interagindo com os locais como se fosse igual a eles.

Chamou ainda a atenção a quantidade de filmes sobre amizades abaladas —seria este um reflexo do estranhamento causado pelo distanciamento social? Os filmes "Close", "Nostalgia", "Tori e Lokita", "Le Otto Montagne" e "Frère et Soeur" trouxeram para o centro de suas tramas casos de relações de cumplicidade que acabam esfaceladas pelas circunstâncias, cabendo aos personagens juntar, ou não, os cacos.

Do Oriente Médio, dois longas usaram ritmo e convenções de thriller para abordar radicalismo muçulmano. "Boy from Heaven" mostrou as maquinações em torno da sucessão de poder no coração do mundo sunita, a universidade egípcia de Al-Azhar. E "Holy Spider" exibiu a história de um serial killer que se via numa jihad contra prostitutas numa das maiores cidades xiitas, a iraniana Meshed.

Algo do melhor da seleção deste ano veio de cineastas que reprisaram seus temas habituais, mas com a eficácia de sempre. Com "Broker", o japonês Hirokazu Kore-eda fez mais um filme que poderia ser chamado "Assunto de Família", voltando a assuntos como parentescos postiços e gente enxotada pelo sistema.

Parte do público teve asco do desfile de vísceras e autópsias sexualizadas de David Cronenberg, mas seu "Crimes of the Future" se revelou um belo ensaio sobre o pós-humano.

Ficou nas costas do cineasta Cristian Mungiu, com seu "R.M.N.", abordar os choques da Europa a partir do ponto de vista de um dos povos mais pobres daquele continente, os romenos, que se tornam mão de obra barata na Alemanha e descontam ódio migratório em trabalhadores do Sri Lanka. O polonês Jerzy Skolimowski também deu sua contribuição ao tema, mas a partir dos olhos do burrinho de "EO", perspectiva ideal para escancarar a estupidez humana.

Fora da competição pela Palma de Ouro, o que se notou foi certo pendor pelo realismo fantástico. Uma forma, talvez, que diretores encontraram para tentar traduzir o surrealismo destes tempos. No franco-italiano "L'Envol", por exemplo, uma garota fala com uma feiticeira que prediz seu futuro. Já no espanhol "El Agua", as tradições dão conta de que algumas mulheres do povoado são predestinadas a ser tragadas pela corrente do rio.

Mais do que realismo mágico, o que há em curso é um retorno ao primitivismo, às tradições ancestrais de um continente que precisa olhar para o seu passado mítico para tentar se compreender. No britânico "Enys Men", uma mulher é assolada pela presença de monolitos oriundos da tradição céltica do lugar.

No português "Restos do Vento", os garotos ainda expressam sua maturação sexual vestindo trajes folclóricos, na mesma toada que o ucraniano "Pamfir" é ambientado em meio a uma festa pagã cujas figuras evocam espantalhos.

Cena de filme
Cena do filme 'Mariupolis 2', do diretor Mantas Kvedaravicius - Divulgação/Festival de Cannes

Por falar em Ucrânia, o conflito naturalmente deu o tom do evento com a presença de longas que perpassam a crise com a Rússia —caso do drama "Butterfly Vision" e do documentário "Mariupolis 2", este último rodado no calor da invasão iniciada em fevereiro.

O festival não se furtou a tomar um lado nessa história, e, num claro cutucão ao Kremlin, escalou "Tchaikovsky's Wife" para a competição principal. O filme é dirigido pelo russo Kirill Serebrennikov, desafeto de Putin e traz uma provocação direta ao tratar o compositor Tchaikóvski, um dos maiores ídolos locais, como um homossexual extravagante.

Quanto ao futuro do cinema em si, Cannes emitiu alguns sinais.

Depois de anos de quebradeira de salas de cinema mundo afora, teve de convocar Tom Cruise, o maior astro vivo de Hollywood, para uma conversa que lotou muito mais do que qualquer filme da programação. Seu "Top Gun: Maverick" é um retorno ao básico, uma homenagem aos blockbusters de outros tempos, carregados de testosterona e sem qualquer aceno ao identitarismo.

"Elvis" trouxe à Riviera Francesa o barroco kitsch de Baz Luhrmann, num filme tão espalhafatoso quanto os trajes de fim de carreira do cantor americano, destinado a arrastar plateias com sua agilidade que até dá tontura e o fazem parecer mais um trailer de 159 minutos do que um longa propriamente.

O Brasil, por fim, ficou de fora de todas as seções do festival, até mesmo das paralelas, salvo pela exibição de uma cópia restaurada de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", dos anos 1960. Três anos atrás, quando Jair Bolsonaro estava havia poucos meses na presidência, tanto "Bacurau" quanto "A Vida Invisível" deixaram Cannes com prêmios na mala, coroando duas décadas de investimentos públicos na produção brasileira.

Hoje, a ausência do país é sintoma de um descalabro que, para além da cruzada anticultural que o atual governo manifesta, é também um sinal de uma miopia do ponto de vista econômico, por privar o Brasil de estar na maior vitrine do cinema que existe.

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