Cannes cutuca Putin com filmes sobre a Ucrânia e ecoa as suas origens antifascistas

Mesmo com ricaços se esbaldando na Costa Azul, sombra do conflito se reflete em programação do festival

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Cannes (França)

Cerca de 2.000 quilômetros separam a marina coalhada de iates luxuosos ancorados no velho porto de Cannes, cidade francesa derramada sobre um pedaço azulzíssimo do Mediterrâneo, e a hoje incendiária Ucrânia.

A distância, mais ou menos a mesma entre as cidades de São Paulo e de Ilhéus, no sul da Bahia, não é assim tão curta a ponto de as bombas de Putin atrapalharem o vaivém preguiçoso de ricaços andando de calção de banho na praia e das moças que atravessam o calçadão com seus vestidos longos em cabides encapados.

Vista do pôster da 75ª edição do Festival de Cinema de Cannes - Patricia de Melo Moreira/AFP

Mas também não é tão longa a ponto de o conflito não impor sua sombra sobre o mais importante festival de cinema do planeta e um dos eventos cultuais mais importantes da Europa —continente que se vê imerso num barril de pólvora como nunca antes desde a Segunda Guerra Mundial.

Os anos passam, mas a história gira em círculos. Não custa lembrar que a semente para uma mostra de cinema sediada em Cannes começou justamente no final da década de 1930 como uma grande demonstração de "soft power" das potências europeias contrárias às ditaduras nazifascistas, então no poder na Alemanha e na Itália e que tinham no congênere em Veneza uma vitrine para seu poderio cultural.

A eclosão da guerra acabou por minar aquela que seria a primeira edição da resposta dos aliados ao festival italiano, de forma que o evento francês só pôde começar mesmo em 1946, com o conflito terminado e numa espécie de esforço de união num mundo que se reerguia dos destroços.

Agora, com sua 75ª edição tendo início nesta terça-feira, o som de bombas e os ecos do mais recente fratricídio europeu virão por conta da estreia mundial de "Mariupolis 2", último filme realizado pelo lituano Mantas Kvedaravicius, documentarista e antropólogo que foi morto em abril deste ano, durante o cerco russo à cidade ucraniana de Mariupol, um dos principais palcos do teatro da guerra.

Cena de filme
Cena do filme 'Mariupolis 2', do diretor Mantas Kvedaravicius - Divulgação/Festival de Cannes

Kvedaravicius, que documentava o ataque, foi capturado por "fascistas russos" e alvejado, segundo disse sua viúva, Ludmila Denisova. Depois, ainda segundo ela, teve o corpo jogado na rua. Ele se encontrava na cidade portuária para documentar a resistência das mesmas pessoas que ele já havia retratado entre 2014 e 2015, época do estremecimento anterior entre Rússia e Ucrânia, no filme "Mariupolis".

Incluído na programação de Cannes de última hora, provavelmente editado às pressas, sua presença é um claro recado da organização do festival, um fiel recorte da "intelligentsia" cultural da Europa ocidental. Vai na mesma toada a inclusão de um filme como "Tchaikovsky's Wife", realizado por um notório desafeto de Putin, o cineasta russo Kirill Serebrennikov, que chegou a ser preso em circunstâncias para lá de nebulosas por supostos crimes fiscais.

Para que não reste dúvida do tipo de recado que o festival, e os diretores que nele concorrem, querem passar, é curioso o caso do filme "Coupez!", mais novo trabalho do francês Michel Hazanavicius, de "O Artista", escolhido para abrir o evento. Antes, o título do filme era "Z", referência ao fato de se tratar de uma comédia sobre zumbis. Mas "Z" também é a letra que tanques russos e entusiastas da invasão da Ucrânia têm ostentado —é um símbolo do apoio a Putin.

Hazanavicius mostra que não relutou muito em mudar o nome de seu longa.

"Talvez este título fosse divertido quando terminamos o filme, mas agora não é, e não posso manter, disse o cineasta. "O meu filme foi feito para trazer alegria e em caso algum eu quereria que ele fosse associado nem de perto nem de longe a essa guerra."

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