Como uma graphic novel LGBTQIA+ se tornou o livro mais proibido dos EUA

'Gender Queer' virou alvo de organizações e políticos conservadores ao abordar identidade de gênero

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Nova York | The New York Times

Assumir a bissexualidade no ensino médio tinha sido relativamente fácil. Maia Kobabe vivia na região da baía de San Francisco, um reduto liberal, e seus pais e colegas de classe apoiaram sua decisão. Mas decidir se assumir como não binário, anos depois, em 2016, foi muito mais complicado, diz Kobabe. As palavras disponíveis não bastavam para descrever sua experiência.

"Não existia a linguagem necessária para isso", conta Kobabe, de 33 anos, que usa pronomes neutros e não se identifica como homem ou mulher. "Eu pensava em minha vontade de assumir que sou não binário, e na dificuldade que enfrentava para ter essa conversa com as pessoas. E, mesmo quando eu conseguia começar uma conversa a respeito, minha sensação era a de que nunca conseguia explicar exatamente o meu ponto."

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Maia Kobabe abraça sua graphic novel, 'Gender Queer' - Marissa Leshnov/The New York Times

Por isso, Kobabe, que trabalha com ilustração e continua vivendo perto de San Francisco, começou a desenhar quadrinhos em branco e preto sobre sua luta por definir uma identidade de gênero, e postava os desenhos no Instagram. "As pessoas começaram a responder, dizendo coisas como ‘eu nem imaginava que alguém se sentisse assim; não sabia que existiam palavras para descrever isso’", diz Kobabe.

O material foi expandido e transformado em uma graphic novel autobiográfica, "Gender Queer", lançada em 2019 por uma editora especializada no gênero. A tiragem foi pequena —5.000 mil cópias— e Kobabe se preocupava com a possibilidade de que o livro não viesse a encontrar leitores.

Então, no ano passado, a abordagem franca do livro quanto à sexualidade e identidade de gênero começou a gerar manchetes em todo o país. Dezenas de escolas retiraram o livro de suas bibliotecas. Autoridades republicanas nos estados americanos de Carolina do Norte, Carolina do Sul, Texas e Virgínia apelaram pela proibição do livro nesses locais, em certos casos rotulando a obra como "pornográfica".

Repentinamente, Kobabe se viu ocupando uma posição central numa batalha nacional sobre que livros devem constar no acervo escolar —e a quem cabe essa decisão. O debate, que vem fervilhando em reuniões de conselhos escolares e assembleias públicas, divide comunidades nos Estados Unidos e põe as bibliotecas na linha de frente de uma guerra cultural que parece estar em ebulição.

No ano passado, quando esses esforços de proibição de livros se aceleraram, "Gender Queer" se tornou o livro mais contestado dos Estados Unidos, segundo a Associação Americana de Bibliotecas e com a PEN, uma organização que defende a liberdade de expressão.

Muitos dos títulos que foram contestados ou proibidos recentemente foram escritos por pessoas negras ou LGBTQIA+, afirmam as duas organizações.

"‘Gender Queer’ veio a ocupar posição central nesse debate porque é uma graphic novel e porque lida com sexualidade em um período em que esse assunto se tornou tabu", disse Jonathan Friedman, diretor de liberdade de expressão e de educação na PEN America. "Existe claramente um elemento de reação hostil aos LGBTQIA+."

Algumas das pessoas que pressionaram pela retirada do livro das escolas dizem que não têm problemas com a história ou a identidade do autor. É o conteúdo sexual de "Gender Queer" que não é apropriado para crianças ou para bibliotecas escolares, elas afirmam.

"Não é uma questão de liberdade de expressão. Não é oposição às organizações LGBTQIA+; o motivo de estarmos destacando esse livro é o conteúdo sexualmente explicito", disse a enfermeira Jennifer Pippin, de Sebastian, no estado da Flórida, que preside uma organização de mães no condado de Indian River, onde "Gender Queer" foi excluído das bibliotecas escolares no final do ano passado, depois que Pippin apresentou uma queixa.

A recente disparada no número de contestações a livros foi amplificada pela polarização política cada vez mais forte, agora que organizações e políticos conservadores se concentram em títulos que tratam de raça e sexualidade, e enquadram a proibição de livros como uma questão de proteger o direito de escolha dos pais.

Organizações liberais, defensores da liberdade de expressão e alguns estudantes e pais de estudantes ativistas argumentam que proibir títulos porque alguns pais se opõem a eles representa uma violação dos direitos dos demais alunos.

A Associação Americana de Bibliotecas registrou contestações a 1.597 livros no ano passado, o número mais alto desde que ela começou a compilar dados sobre livros proibidos, 20 anos atrás. Em muitos casos, os títulos removidos não eram obras de leitura obrigatória para os estudantes; estavam simplesmente disponíveis como parte do acervo das bibliotecas.

Diversos fatores fizeram de "Gender Queer" um alvo. Ele é um livro de memórias em formato de graphic novel que trata da puberdade e inclui alguns desenhos de personagens nus e situações sexuais —imagens que os críticos do livro puderam compartilhar via mídia social, e com isso alimentar a reação a ele. O livro trata do desconforto do autor com os papéis de gênero tradicionais e incorpora imagens de masturbação, sangue menstrual e experiências sexuais confusas.

Ele ainda chegou ao mercado em meio a um debate político e emocional complexo sobre identidade de gênero e os direitos dos transgêneros, depois que autoridades eletivas republicanas na Flórida, no Texas e em outros lugares apresentaram projetos de lei que criminalizariam a aplicação de tratamentos medicamente aceitos a crianças transgênero ou proibiriam discussões sobre identidade de gênero e sexualidade em algumas séries do ensino fundamental.

Ser apanhado no meio de uma controvérsia nacional vem sendo enervante para Kobabe, que expressou preocupação sobre o efeito que as proibições podem ter sobre jovens que questionam suas identidades.

"Ao remover aqueles livros das prateleiras, ou os desafiar publicamente numa comunidade, o que você está dizendo a qualquer pessoa jovem que tenha se identificado com aquela narrativa é que ‘não queremos sua história aqui'", disse Kobabe.

Kobabe, que foi criado como menina, começou a questionar sua identidade na infância. Certa vez, em uma viagem escolar na terceira série, tirou a camiseta para entrar no rio e foi repreendido por um professor. Em outro momento, ficou secretamente feliz quando outra criança da escola primária perguntou, gritando, "mas você é menino ou menina?".

Kobabe encontrou consolo no desenho, em canções de David Bowie e em séries de fantasia como "Harry Potter" e "O Senhor dos Anéis", e se interessou afetivamente tanto por meninos quanto por meninas.

A puberdade foi incômoda e traumática. "Não quero ser menina. Mas também não quero ser menino. Quero só ser eu", escreveu Kobabe num diário, aos 15 anos de idade.

Em 2016, Kobabe começou a se assumir como não binário, diante de amigos e professores, e a usar pronomes neutros para se descrever. Os pais de Kobabe —ambos professores— o apoiaram, mas às vezes se sentiam confusos. Para explicar qual era a sensação de ser não binário, Kobabe começou a desenhar as imagens que terminariam por servir de base a "Gender Queer".

Ele imaginava que o livro interessaria primordialmente a jovens adultos que tivessem lutado com problemas de identidade de gênero, e aos amigos e parentes de pessoas não binárias. A editora do livro, Lion Forge, o dirigiu a adolescentes mais velhos e adultos, em seus esforços de promoção. Em 2020, o livro ganhou o Alex Award, um prêmio da Associação Americana de Bibliotecas destinado a livros escritos para adultos que possam contemplar "os jovens adultos, dos 12 aos 18 anos".

O prêmio despertou a atenção de bibliotecários de todo o país para "Gender Queer", já que eles muitas vezes consideram esse tipo de prêmio antes de decidir que livros comprar. As bibliotecas de escolas de ensino médio de todo o país começaram a incorporar o livro aos seus acervos. Na Amazon, o livro é classificado como apropriado para pessoas de 18 anos ou mais; no site da Barnes & Noble, ele é recomendado para leitores de mais de 15 anos.

Em setembro, alguém encaminhou a Kobabe via Instagram um vídeo viral de uma mãe enfurecida que denunciava o livro como pornográfico, numa reunião de conselho escolar no condado de Fairfax, na Virgínia.

"Para mim, aquilo foi decepcionante e incômodo, mas não achei que fosse algo a que eu precisasse dedicar atenção", disse Kobabe. "Mas a situação só se agravou depois."

Muitos dos críticos do livro apontaram para algumas poucas imagens explícitas que ilustram a evolução na maneira pela qual Kobabe veio a compreender gênero e sexualidade, na adolescência e no começo da vida adulta, entre as quais uma imagem que mostra Kobabe e uma namorada experimentando um brinquedo sexual, e outro que o mostra fantasiando sobre dois homens fazendo sexo.

O livro foi proibido em dezenas de distritos escolares e retirado de bibliotecas em muitos lugares dos Estados Unidos, por exemplo nos estados de Alasca, Iowa, Texas e Pensilvânia. Algumas escolas retiraram o livro de suas bibliotecas preventivamente, sem queixas formais. O assunto se tornou tema frequente de políticos republicanos importantes, entre eles Glenn Youngkin, agora governador da Virgínia, Ron DeSantis, governador da Flórida, e Henry McMaster, governador da Carolina do Sul, que definiu o livro como "obsceno e pornográfico" e "provavelmente ilegal".

O título apareceu em uma lista de livros rotulados como sexualmente explícitos que circulou entre as integrantes da Moms for Liberty, mães pela liberdade, uma organização sem fins lucrativos fundada em 2021 para defender "os direitos dos pais nas escolas"; a entidade vem ajudando a promover os esforços de proibição de livros. Pippin ouviu falar pela primeira vez de "Gender Queer" quando viu o nome do livro na página de Facebook da organização, em outubro. Ela procurou o livro no sistema local de bibliotecas, que inclui as escolas em que seus filhos de 13 e 17 anos estudam, disse.

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Jennifer Pippin, fundadora da organização Moms for Liberty - Todd Anderson/The New York Times

"Qualquer criança de dez ou 17 anos podia simplesmente retirar o livro", disse Pippin. "Isso pode causar danos a uma criança, se ela não sabe o que o livro contém." Pippin fez uma queixa ao conselho escolar, e pouco depois o livro foi retirado. Depois de uma revisão, o título foi permanentemente excluído.

Em algumas comunidades, as divisões com relação a "Gender Queer" se tornaram profundas e dolorosas.

Algumas semanas atrás, depois que uma integrante do Moms for Liberty submeteu uma queixa sobre "Gender Queer" ao distrito escolar central de Wappingers, no interior do estado de Nova York, o livro foi removido da biblioteca (nenhum estudante o tinha retirado para ler até ali).

Um comitê de professores, pais e educadores revisou o livro e determinou que não era inapropriado e deveria voltar ao acervo. O superintendente do distrito, mencionando que o livro continha imagens sexualmente explícitas, desconsiderou a decisão do comitê e submeteu o caso ao conselho escolar, que votou em favor da proibição, por unanimidade.

Numa reunião recente do conselho escolar, um grupo de estudantes e pais de alunos denunciou a proibição, e uma pessoa argumentou que o livro poderia ajudar jovens que estão explorando a questão da identidade de gênero e cujas famílias não os apoiem. Outros classificaram o livro como obsceno e inapropriado.

Mandy Zhang, aluna do terceiro ano do ensino médio em uma escola do distrito, disse que proibir "Gender Queer" envia uma mensagem prejudicial aos estudantes gays, não binários e transgênero.

"As pessoas da comunidade LGBTQIA+ e dos grupos minoritários usam esses livros como forma de se expressar, de se conectar ao mundo e encontrar apoio", disse Zhang, na reunião do conselho escolar. "A proibição ao livro silenciou esses grupos, essas pessoas, e isso faz com que não se sintam validadas."

Zhang criou uma petição pela reversão da proibição e conseguiu mais de mil assinaturas em uma semana. Ela criou um clube de livros proibidos em sua biblioteca local e planeja um evento de arrecadação de fundos para bancar a distribuição gratuita de cópias de "Gender Queer". Mas, nas bibliotecas de seu distrito escolar, o livro já não está disponível.

Tradução de Paulo Migliacci

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