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David Bowie surge como messias do rock em documentário em Cannes

'Moonage Daydream' apresenta o músico como agente catalisador da vertigem que foi a segunda metade do século 20

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Cannes (França)

A certa altura de "Moonage Daydream", documentário sobre a carreira de David Bowie que estreou no Festival de Cannes, as imagens mostram o público silencioso em um de seus shows. Enquanto ele canta "Heroes", música mais famosa de sua fase berlinense, a plateia observa boquiaberta, quieta e concentrada, mas sem nunca se entregar aos gritos e ataques convulsivos que as fãs dos Beatles, uma década antes, haviam legado à história do rock.

Fica evidente que a adoração ali não é exatamente a da típica histeria, mas algo mais próximo de um êxtase religioso ou algo assim. E é justamente por essa senda que o diretor californiano Brett Morgen envereda em seu filme. Não está preocupado em contextualizar didaticamente as várias fases do camaleônico Bowie, mas em fazer um ensaio labiríntico sobre os deuses modernos. Não era ele, afinal, o autoproclamado messias do rock?

cena de documentário
David Bowie em cena do documentário 'Moonage Daydream', dirigido por Brett Morgen e exibido no Festival de Cannes de 2022 - Divulgação

É até por isso que Morgen começa com uma epígrafe do próprio músico, citando Nietzsche e falando da morte de Deus. Em seguida, empilha imagens do homem na Lua, de longas do expressionismo alemão, dos protestos de maio de 1968, das coreografias de Lennie Dale, da Guerra do Vietnã, das telas de Kandinski e dos demônios de Kaneto Shindô.

O caleidoscópio vem embalado por imagens de arquivo de shows e videoclipes. Quem não conhece minimamente os marcos da carreira do cantor pode acabar se perdendo, mas mesmo os menos ardorosos dos fãs vão sacar que o coração do filme está entre a fase "Space Oddity", do fim dos anos 1960, com Bowie se perdendo no espaço sideral, e o lançamento de "Let's Dance", seu recomeço, daquela vez nas pistas de dança do início dos anos 1980.

Entre os dois marcos, ele surge em sua fase americana, mais pesada e carregada, depois adota a elegante persona Thin White Duke, marcada por seu uso quase industrial de cocaína, para se voltar ao minimalismo na vibrante e cindida cidade de Berlim, no fim da década de 1970.

Mais do que uma antena de seu tempo, como o próprio Bowie se descreve, ele surge como um agente catalisador da vertigem que foi a segunda metade do século 20, articulando todos esses signos e os descontruindo todos —Man Ray, Buda, Fats Domino, Ingmar Bergman, Vermeer, tudo cabe.

O primeiro signo que Bowie implode é o da expressão da sexualidade. A androginia, na qual ele se refestelou em sua fase "Ziggy Stardust", diz o músico, é sinal da pós-modernidade. Mas que o público não espere detalhes picantes sobre suas aventuras sexuais ou sua lendária transa com Mick Jagger que teria sido surpreendida no flagra.

Quando muito, o cantor faz uma defesa enfática de sua bissexualidade e se queixa de que a comodidade da relação amorosa não tem lugar na vida de um artista para, uma hora depois, surgir em plena lua de mel com a modelo Iman, com quem foi casado nos últimos anos da vida.

Morgen, que já havia usado o mesmo expediente ao retratar Kurt Cobain em "Montage of Heck", não conta com as chamadas "talking heads", as entrevistas com pessoas que servem para dimensionar o personagem retratado. Só quem fala é o próprio David Bowie, a partir de declarações pinçadas das várias entrevistas que fez ao longo da vida. O diretor também não lança mão de letreiros explicativos ou coisas do tipo —"Moonage Daydream" é um documentário todo calcado na montagem, na articulação um tanto subjetiva de várias imagens e sons intercalados.

O que não significa, é claro, que o espectador fique totalmente no limbo sobre quem foi o londrino que levou a vanguarda para o rock como forma de escapar da pasmaceira da vidinha suburbana no bairro de Brixton. Ele conta, por exemplo, que sua primeira grande influência foi o meio-irmão, "curioso sobre todas as coisas do mundo", que depois serviu na Força Área britânica e, depois de receber um diagnóstico de esquizofrenia, passou o resto da vida num hospital psiquiátrico.

Logo em seguida, o tema da esquizofrenia volta a ser citado, mas agora Bowie está exemplificando os "universos mentais" que ele cria na cabeça e como na música escoava a sua "falta de repertório verbal para descrever" o que via.

"Creio em energia, mas não boto um nome nela", responde a um entrevistador que o pergunta sobre sua crença em Deus. Sobre seus vários personagens, Bowie diz que eles são resposta a seu medo do público, mas um jornalista esboça outra possibilidade, impressionado com a velocidade das mudanças. "É como se ele tivesse aprendido a correr antes de aprender a andar."

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