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Desejo sexual por Hitler guia 'A Consulta', sobre mulher que se expõe à la Philip Roth

Alemã Katharina Volckmer afirma que teve dificuldades para publicar romance em seu país

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São Paulo

Numa passagem do livro "A Consulta", a protagonista conta com displicência ao seu interlocutor, o doutor Seligman, que preenchia suas sessões de terapia com longas descrições sobre o pênis de Adolf Hitler.

"Jason prometeu assinar qualquer coisa que atestasse a minha natureza calma e plácida, assim nunca mais precisaria me escutar contando como adquiri o hábito de gozar em cima de pequenos retratos do Führer ao imaginar seu bigode fazendo cócegas nas minhas partes. E como achava difícil chegar ao orgasmo sem fazer a saudação."

Katharina Volckmer
A escritora alemã Katharina Volckmer, autora de 'A Consulta' - JF Paga/Divulgação

A ideia de ter Hitler como obscuro objeto de desejo não é, de longe, a única provocação num livro que, em seus melhores momentos, é um eco do divã desbocado de Philip Roth em "O Complexo de Portnoy".

"Pensei no meu pai enquanto chupava ele", diz a personagem, uma alemã que permanece anônima, sobre outro episódio erótico. "Imaginar os pais vendo a gente fazer sexo oral selvagem com um desconhecido num banheiro público sujo é praticamente o contrário de ver os pais trepando."

Se à primeira vista as declarações podem soar como afronta barata aos leitores, a autora diz que não teve intenção. O título completo do livro da alemã Katharina Volckmer, radicada no Reino Unido, é "A Consulta (ou a História de um Pau Judeu)". Nos Estados Unidos, o livro saiu simplesmente como "O Pau Judeu".

Quem se aventurar pela narrativa, um monólogo de cem páginas dirigido a um médico silencioso, vai entender que a fixação peniana é um recurso para explorar os desconfortos de uma personagem complexa e boquirrota com a condição feminina, com a identidade germânica e a culpa pelo Holocausto.

"Enquanto eu escrevia, não estava claro o quanto aquilo escandalizaria as pessoas. Acho que estou acostumada demais à minha cabeça", diz a escritora, rindo. "Não estava tentando particularmente chocar ninguém, as coisas só saíam. As pessoas que se incomodaram usaram muito a palavra ‘nojento’, que acho um pouco forte."

"A arte não está aqui para bajular as pessoas", continua ela. "Tem que chacoalhar você e fazer pensar. E acho que às vezes há certo medo da arte, hoje, mas para mim o objetivo é deixar as pessoas desconfortáveis. Essa imagem que você posta nas redes sociais lendo um livro com um copo de café e meias de lã —não é isso que a arte tem que fazer. Fico meio feliz quando as pessoas ficam incomodadas."

Volckmer atribui a esse incômodo a dificuldade de o livro encontrar uma editora disposta a traduzir a obra no seu país natal, onde a memória do nazismo segue um tema extremamente delicado. Ouviu de alguns editores que o livro era impublicável. Acabou saindo com algum atraso por uma casa independente.

"Alguns editores não gostaram, claro, e tudo bem, mas havia gente com medo. E eu acho que isso é em si problemático. Chegamos a um ponto em que as pessoas estão receosas demais para publicar um livro ou fazer certos tipos de arte. Isso não é nada bom."

O medo da arte reflete o medo de seus próprios pensamentos, afirma a escritora, e a literatura pode funcionar como um antídoto poderoso. A sala do médico, onde se passa o livro inteiro e cuja natureza fica clara só lá para a segunda metade, aparece como um ambiente ideal para exorcizar o interdito.

"A religião costumava ser o lugar onde fazíamos confissões, mas estamos em sociedades cada vez menos religiosas, então o médico acabou substituindo o padre ou o rabino", palpita. "Porque não deixamos de ter a necessidade de conversas como essas."

Muito do que soa provocativo em "A Consulta" pode ser interpretado também como uma tentativa da protagonista de chocar seu interlocutor em cena. Ou ao menos de sentir a temperatura da água, entender até onde é permitido avançar, um estilo de ousadia tateante que marca a literatura de Volckmer.

A certa altura, a narradora diz que "quando nos obrigam a falar sobre nós mesmos, as coisas sempre ficam muito estranhas, porque na verdade há muito pouco a dizer". Cem páginas ao redor desmentem essa fala, mostrando que talvez seja só questão de deitarmos todos um pouquinho no divã.​

A Consulta

  • Quando Lançamento em 5/5
  • Preço R$ 54,90 (104 págs.)
  • Autoria Katharina Volckmer
  • Editora Fósforo
  • Tradução Angélica Freitas
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