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Helen Beltrame-Linné

Johnny Depp fez de Amber Heard uma vilã megera em júri circense

De todo o lado estouraram memes zombando da atriz e ridicularizando suas alegações de violência doméstica

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Foi por puro acaso que assisti ao início do julgamento entre Johnny Depp e Amber Heard. Cliquei no link da newsletter por pura curiosidade, querendo colar uma imagem àquelas palavras —afinal, não via o rosto de Depp havia anos e nunca tinha ouvido falar de Heard. Mal sabia que estava dando início a um verdadeiro espetáculo seriado do qual seria impossível escapar.

Como em qualquer produto audiovisual que se preze, o segredo é criar um personagem forte logo nos primeiros instantes, e disso se encarregou o testemunho inicial de Depp. Num tom entre o etéreo e o idiossincrático, era difícil desgrudar os olhos da imagem hipnotizante do galã, com sua estranheza e o inegável carisma que rendeu a ele uma carreira milionária em Hollywood.

Os atores de Hollywood Johnny Depp e Amber Heard - Reuters/AFP

Seu depoimento destoava do que costumamos ver em filmes e seriados sobre tribunais —não havia perguntas ou objeções, o que se tinha ali era um monólogo autocentrado e interminável do ator. Depp falava como que para si mesmo, provavelmente sabendo que a câmera da sala de julgamento se encarregaria de transformar uma fala para ninguém num discurso para milhares.

Ouvindo seus relatos, em especial sobre sua infância, fui tomada por uma empatia triste por aquele personagem. Que milionário infeliz, pensei, não há dinheiro nem sucesso no mundo que vá dar a ele o amor que nunca teve dos pais.

À medida que o julgamento avançou, com alegações e detalhes sórdidos nas semanas seguintes, continuei sentindo tristeza por aqueles personagens milionários e miseráveis. Mas a esse sentimento se juntou um outro –fui tomada por raiva.

De todo o lado estouravam memes zombando de Heard e ridicularizando suas alegações de violência doméstica. As fotos não revelariam um olho roxo suficientemente claro para provar a violência física do marido, seu nariz não estaria lá tão inchado, a lesão no coro cabeludo não bastaria para provar que o tufo de cabelo no chão era mesmo de Heard e não extensões capilares.

As testemunhas em favor das alegações de Heard sobre o desequilíbrio do companheiro, que incluíam desde ex-amigos, sua maquiadora e até a ex-agente de Depp, teriam sido compradas. Quem assistiu a esses testemunhos concordaria comigo que pessoas contratadas teriam dado depoimentos mais coesos.

O mais assustador é que para tomar o lado de Depp, seria necessário ir além das testemunhas e ignorar a performance do próprio Depp na sala de julgamento. Um homem que, sob o escrutínio da transmissão ao vivo, se permitiu ouvir depoimentos macabros fazendo desenhos e dando risadinhas e respondeu com deboche e ironia aos questionamentos dos advogados. Imaginem do que se sente capaz uma figura dessas entre quatro paredes?

De fato, nem é preciso imaginar. Num vídeo exibido no julgamento, Heard chega à cozinha de manhã e encontra Depp fora de si, claramente alterado por alguma droga, bebendo vinho como se fosse água, discorrendo impetuosamente sobre coisas sem sentido e destruindo os armários ao seu redor. A índole violenta e imprevisível do ator fica evidente e me deu calafrios.

O que assusta mais do que a resistência generalizada em reconhecer manchas no galã simpático que estampou as paredes de seus quartos adolescentes 20 anos atrás, é o fato de a opinião pública ter posto Depp e Heard em pé de igualdade.

Mesmo pessoas que não acompanharam o julgamento passaram a resumir a situação como "duas estrelas de Hollywood estiveram casadas durante apenas alguns meses, durante os quais consumiram drogas, destruíram casas e se agrediram mutuamente".

Ora, Heard era uma atriz desconhecida quando se casou com o multimilionário e célebre Depp –ela com 24, ele com 47. Nunca houve igualdade entre os dois. O americano é dono de um fortuna imensurável, tem uma ilha privada nas Bahamas, uma vila na França, um castelo na Inglaterra, além de inúmeras coberturas em Los Angeles e uma rua inteira de casas na cidade. As estimativas mais ousadas estimam a fortuna de Heard, depois do divórcio que rendeu a ela US$ 7 milhões, em cerca de US$ 12 milhões, o que não significa nem 5% da de Depp.

Depp tem a seu dispor uma verdadeira máquina de assistentes, publicistas, além de seus fanáticos fãs que conduzem uma campanha de ridicularização de Heard nas mídias sociais. Não há nem mesmo igualdade física entre os dois —Depp é um homem bastante encorpado de 1,78, enquanto Heard uma mulher mirrada que pesava cerca de 50 quilos quando entrou com o pedido de divórcio e ordem de restrição para evitar contato com o marido.

A desigualdade era constante no próprio julgamento. Se Depp podia dar seus longos depoimentos e respostas cínicas, com Heard era o oposto. Bastava uma continuação além da resposta para que a advogada de Depp pedisse para excluir dos registros o que a atriz havia dito.

Pior, durante o questionamento de Heard, a advogada de Depp não deixava que terminasse uma frase —os protestos constantes quebravam sua linha de raciocínio e protegiam Depp do que seria revelado nas respostas. Enquanto Heard era silenciada e sua advogada afogava em questões burocráticas legais, Depp ria com seus óculos escuros sentado em sua cadeira na corte.

A quantidade de brigas e conflitos relatados por ambas partes aponta para um relacionamento extremamente tóxico. E a personalidade de Heard, que se via como uma "mulher durona", que se orgulhava de não se vimitizar nem quando era claramente vítima de abuso, dá indicativos de que deveria haver sim agressões mútuas. Mas o diferencial vem num depoimento comovente de uma ex-amiga de Heard. "Ela não tinha muita autopreservação."

Um diálogo gravado entre Depp e Heard revela a dinâmica do casal —a atriz é forçada a pedir desculpas por ter gritado com Depp na frente do filho do ator depois de ele ter derrubado vinho em cima dela pela terceira vez. Ora, um homem adulto se embebeda a ponto de desmaiar com um copo de vinho na mão na frente de seu filho e quem deve pedir desculpas por assustar a criança é a madrasta que gritou?

Um colaborador de Depp revelou uma anedota que passou desapercebida, mas contribui para a compreensão da mentalidade do ator. Durante as gravações de suas cenas, ainda que esteja contracenando com outros atores, Depp ouve música alta num ponto de som no ouvido. Convenhamos, uma pessoa dessa não pode ser equilibrada.

Isto sem mencionar as mensagens trocadas por Depp com amigos (como o ator Paul Bettany) e funcionários falando em desejos de morte, violência sexual e "humilhação global" contra Heard. ​

Há inúmeros episódios protagonizados pelo "monstro" –palavra que o próprio Depp usava para se descrever depois de consumir álcool e drogas. Num deles, Depp perde a ponta do dedo num acidente mal explicado que ele tenta creditar a Heard, que teria jogado uma garrafa em sua direção numa briga. Nem médicos especialistas foram capazes de justificar que o corte sofrido pelo ator era consistente com o que ele descreve.

As testemunhas de Depp, contudo, insistiam nunca terem visto Depp usando drogas, como seu técnico de som contratado que, entre relatos deslumbrados sobre as viagens espontâneas de jatinho que fazia à ilha de Depp, contou nunca ter visto Depp bêbado, já que a bebida não teria mais efeito nenhum sobre ele.

"Há uma vítima de abuso doméstico nesse julgamento e esse alguém não é a senhora Heard", declarou uma das advogadas do ator. Como acreditar nisso? Depp justificou seu desinteresse na sala de julgamento com uma anedota —teria declarado à ex-mulher, por ocasião do divórcio pedido por ela, "você nunca mais verá os meus olhos". Seriam essas palavras de um homem que foi vítima de abuso ou antes de um predador que não aceita ter perdido sua presa?

Depois de tudo que se passou entre os dois –incluindo um processo contra o jornal britânico The Sun, no qual o juiz declarou que as acusações de abuso de Heard eram "substancialmente verdadeiras"–, que conclusão tirar desse processo movido por Depp? Uma ação de indenização contra Heard por causa de um artigo de jornal no qual ela declara que teve um relacionamento abusivo –o que, ainda que metade de suas alegações sejam falsas, ela de fato teve.

Não parece mais do que uma manobra desesperada de uma estrela decadente, financeiramente quebrada, que perdeu o seu agente, as franquias que garantiam a ele salários milionários e claramente jogou a própria vida na lata do lixo.

Resta agora ver se o júri estava assistindo ao mesmo julgamento que eu. Enquanto eles deliberam, o despreocupado Depp faz aparições surpresa em shows de Jeff Beck pelo mundo. Nada mais interessa a Depp, protagonista inegável do espetáculo "Depp x Heard", que deu a Heard o papel de vilã megera.

Já Heard segue sob ataque, motivo de chacota mundial, vivendo o que havia declarado no fatídico artigo que deu origem a todo esse circo. "Dois anos atrás, eu me tornei uma figura pública representando abuso doméstico, e senti a força completa da ira da nossa cultura contra mulheres que ousam denunciar abusos."

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