Judith Lauand, a primeira concretista do país, faz cem anos e terá mostra no Masp

Única mulher a integrar o grupo Ruptura dedicou vida a obra que antecipou questões como a ditadura e a Guerra do Vietnã

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

O salto vanguardista da pintora e gravadora Judith Lauand ocorreu no ano de sua primeira exposição individual na galeria Ambiente, em São Paulo. Em 1954, a convite do artista plástico Waldemar Cordeiro, ela passou a integrar o grupo Ruptura, o movimento disparador da arte concreta no Brasil.

Em confronto com o abstracionismo lírico, sua pintura absorveria mais e mais, a partir daquele ano, os processos matemáticos na composição de cores e planos.

obra de arte
Judith Lauand em sua formatura na Escola de Belas Artes em Araraquara, no interior paulista, em 1950 - Acervo Judith Lauand

Aos 32 anos, à diferença de seus amigos concretistas, ela encarnou uma segunda vanguarda. Era a única mulher do Ruptura e uma presença feminina expressiva num círculo artístico de poderio masculino. Cercada de pioneirismo estético e social, Judith Lauand faz cem anos nesta quinta-feira.

Há dez anos, com a saúde frágil, ela deixou de trabalhar no ateliê instalado em seu apartamento na rua Fradique Coutinho, no bairro paulistano de Pinheiros. Sua última aparição pública se deu na abertura da exposição "Judith Lauand: Os Anos 50 e a Construção da Geometria", no Instituto de Arte Contemporânea, o IAC, em 2015. Desde então, ela permanece em casa, não dá entrevistas e chega a descrer da própria idade.

Numa celebração familiar do centenário, seus sobrinhos Elissa e Manoel decidiram transpor um óleo sobre tela sem título, de 1960, para uma gravura em metal de tiragem pequena. A artista assina lentamente cada uma delas. De 25 de novembro a 2 de abril do ano que vem, o Masp vai realizar a principal homenagem com a mostra "Judith Lauand: Desvio Concreto", integrante do biênio dedicado às "Histórias Brasileiras".

"Um aspecto crucial de sua trajetória que foi deixado à margem é a presença de questões políticas em sua obra, como a repressão da ditadura militar no Brasil, a Guerra do Vietnã e a condição da mulher na sociedade brasileira, quando Lauand aborda temas como violência, sexualidade, submissão e liberdade feminina", analisa Fernando Oliva, curador da exposição no Masp.

Dentre as cerca de cem obras selecionadas, o museu vai exibir "Atenção", de 1968, "Stop the War" e "Temor à Morte", de 1969, representativas dessas derivações políticas.

obra de arte
'Até a Morte', acrílica sobre tela de Judith Lauand, de 1969 - Reprodução

Além da retrospectiva, o Masp prepara um livro com textos de autoras brasileiras e internacionais sobre a obra de Lauand. "A mostra irá rever sua produção a partir de novas perspectivas, reforçando o fato, muitas vezes negligenciado pela história da arte brasileira, de que Lauand concebeu um dinamismo muito próprio em suas composições, para além dos dogmas do concretismo em que havia se iniciado", diz Oliva.

"Em seu trabalho a artista cria uma nova relação entre formas, linhas e cores que logo buscaria transcender regras e convenções da época, as décadas de 1950 e 1960."

Lauand, Maurício Nogueira Lima e Hermelindo Fiaminghi se incorporaram ao Ruptura dois anos depois da exposição que aglutinou Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros, Luiz Sacilotto, Anatol Wladyslaw, Leopold Haar, Lothar Charoux e Kazmer Féjer no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, há sete décadas. A história desse núcleo pioneiro da arte concreta ganha uma revisão na mostra "Ruptura e o Grupo: Abstração e Arte Concreta, 70 anos", em cartaz no MAM paulistano até 3 de julho.

obra de arte
'Atenção', obra de Judith Lauand de 1969 - Reprodução

Organizador de exposições de Lauand nos anos 2000, Celso Fioravante destaca o papel da artista na conquista de espaços para as mulheres nas artes plásticas. "Judith Lauand teve menos visibilidade, provavelmente porque o circuito de arte reflete o país e a sociedade em que vivemos. Se ainda hoje vivemos em uma sociedade machista, patriarcal e intolerante com mulheres que buscam sua autonomia e seu espaço próprio, não é difícil imaginar como era nos anos 1950 e 1960", diz o crítico de arte.

"O próprio grupo Ruptura era um predominantemente masculino e, apesar de Judith dizer que havia um clima de cordialidade entre todos, ela própria percebia que Waldemar Cordeiro buscava o protagonismo no grupo", ele acrescenta.

Elissa Lauand, sua sobrinha-neta, lembra da resistência da tia às pressões familiares para que se casasse. Sem querer abandonar a pintura, desmanchou um noivado. "Ela sempre teve muita certeza do que queria na vida. Não vou dizer que levantava a bandeira do feminismo, mas a vida dela tem essa clareza de propósito. Ela estudava muito, tinha um amor incondicional à arte", diz a sobrinha, que agora cuida da artista.

obra de arte
'Ele Te Amou', obra de Judith Lauand de 1969 - Reprodução

A família de Judith Lauand veio do Líbano. A mãe nasceu na cidade de Rachaia; o pai, em Zahle. Nascida em Pontal, no interior de São Paulo, em 1922, Lauand não tardou a se transferir com a família para Araraquara, também no interior paulista.

Num gesto de mecenato, a família Lupo ofereceu a ela uma viagem de estudos à Itália. Com menos de 18 anos, ela não ganhou a autorização do pai. O sonho de olhar de perto os quadros dos mestres da pintura só seria realizado aos 76 anos.

Em 1998, acompanhada pela irmã, Olga, e pelas sobrinhas-netas Elissa e Patrícia, Lauand entrou pela primeira vez em um avião e realizou uma viagem extensa pela Europa, visitando museus da Espanha, da Itália, da França e do Reino Unido. À noite, de tão ansiosa, perdia o sono. No Louvre, choraria diante da "Mona Lisa", de Leonardo da Vinci. O sorriso interessou a ela menos que as mãos.

"Ela foi exclusivamente artista durante a vida inteira. Não escreveu críticas nem fez curadorias. Sempre viveu apenas da venda de seu trabalho", conta Manoel Lauand, seu sobrinho. Hoje, ela é representada pela galeria Berenice Arvani.

obra de arte
Judith Lauand atua como monitora na 2ª Bienal de São Paulo no Museu de Arte Moderna de São Paulo em janeiro de 1954 - Acervo Judith Lauand

A pintora deve a sua iniciação à Escola de Belas Artes, em Araraquara, mas começou a identificar seu caminho pessoal como monitora da segunda edição da Bienal de São Paulo, em 1953 e 1954, ao conhecer as obras de Paul Klee, Alexander Calder e Piet Mondrian. Premiado na primeira Bienal paulistana, o artista suíço Max Bill, teórico da arte concreta, também inspirou seu trabalho.

"Minha integração na arte concreta foi total", disse a artista em um texto autobiográfico. "Não vi com bons olhos a criação do neoconcretismo. Pensei 'se os concretos do Rio colocaram a necessidade de se exprimir, de tornar expressivo o vocabulário da arte concreta, que o façam." Lauand insistiu em dinamizar as "estruturas através de relações cambiantes de cor, espaço, forma."

Em 1956, ela participou da união histórica das artes visuais com a poesia concreta. A primeira Exposição Nacional de Arte Concreta, no MAM paulistano, marcou sua aproximação com os poetas paulistas Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos, que a homenageou com um profilograma.

"Assim como no caso do grupo Ruptura, foi a poesia concreta que percebeu as qualidades de Judith Lauand e dela se aproximou. O que a artista então fez foi se apropriar daquela nova expressão e a incorporar em sua produção. Mas não o fez de uma maneira automatizada, mas sim deu a ela a sua fisionomia", avalia Celso Fioravante. "Sua aproximação com a arte concreta se dá de maneira mais popular, poética e pessoal que intelectual e acadêmica."

Ruptura e o Grupo: Abstração e Arte Concreta, 70 anos

  • Quando Ter. a dom., das 10h às 18h (última entrada às 17h30). Até 3 de julho
  • Onde Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) - av. Pedro Álvares Cabral, s/nº – Portões 1 e 3
  • Preço R$ 25. Grátis aos domingos. Agendamento prévio necessário
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.