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Danilo Thomaz

Juliette e Samantha Schmütz: o que é 'ser artista' no Brasil?

Debate entre cantora ex-BBB e atriz relembra hierarquias de um Brasil em que arte, entretenimento e realities se confundem

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Danilo Thomaz

Jornalista, correspondente do podcast Fumaça e mestrando em ciência política pela Universidade Federal Fluminense

Na última edição do programa Altas Horas, a ex-BBB e cantora Juliette falou que se sentia no dever, enquanto artista, de se posicionar sobre temas políticos e sociais. Era o que fazia enquanto cidadã. É o que se sente na obrigação de fazer agora. A comediante Samantha Schmütz, que vem tentando se cacifar como uma espécie de baliza moral da classe artística, aprovou a declaração de Juliette. Mas lançou uma questão. "Ela é artista?"

Não estaríamos no Brasil se o assunto não tivesse se tornado uma celeuma, que, por sinal, se juntou a outra, de dias atrás. No caso, envolveu a ex-BBB Jade Picon. Aprovada num teste da TV Globo para participar da novela "Travessia", de Glória Perez, Jade despertou diversas reações. Desde o corporativismo de quem a acusou de não ter DRT, documento que regula a profissão dos atores, até um comentário da ex-BBB Natália Deodato, que a acusou de ter conseguido essa chance por ser "padrão".

Samantha Schmütz e Juliette - Folhapress/ Instagram

A difícil relação entre ex-BBBs e ao menos parte da classe artística não vem de hoje. A atriz Grazi Massafera —indicada ao Emmy pela magistral interpretação da personagem Larissa na primeira temporada de "Verdades Secretas"— relatou em diversas ocasiões o preconceito sofrido no início da carreira. Até tirar a "marca de Caim" da testa foram dez anos. A ex-BBB Leka, participante da primeira edição do programa, conta que o estigma atrapalhou sua carreira enquanto atriz.

A fronteira entre a arte e o entretenimento nunca foi clara na televisão. E, na verdade, o próprio teatro sofreu disso. Até a profissão de ator ganhar alguma respeitabilidade artística, atores e atrizes tinham a famosa "carteirinha de puta". A atriz Dercy Gonçalves contava que, em mais de uma ocasião, a polícia perguntou a ela se tinha gonorreia —doença que ela pensava que dava na garganta.

Mesmo dentro do teatro e do cinema, é bom dizer, sempre houve uma hierarquia entre aquilo que é considerado "arte" e aquilo que é mero "entretenimento". Comédias ligeiras, populares, herdeiras da velha chanchada brasileira, como as que Samantha Schmütz faz, nunca contaram com prestígio artístico. Justo ou injusto, a verdade é que não contam até hoje.

No caso da televisão, onde as fronteiras são mais cinzentas, tudo se complica e, como diria o velho Chacrinha, "se trumbica". Por um lado, o país abrigou seus melhores artistas na telinha. Gente do nível de Dias Gomes, Fernanda Montenegro e Paulo Autran. Pessoas que, de maneira inegável, elevaram o nível da dramaturgia brasileira.

Mas nem só dos sonhos da geração dos anos 1960 vive a televisão. Ao lado de grandes figuras artísticas, vimos, nos anos 1990, modelos despontarem como atrizes e oferecerem uma canastrice de fazer inveja a Joan Crawford, diva da Hollywood pré-Cinemascope. Era o tempo da "modelo e atriz". A tendência despertou a ira de figurões da época. Mas como esquecer o humor fino da saudosa (e fina) Betty Lago em "Quatro por Quatro", um dos maiores sucessos do horário das sete nos anos 1990?

Com o advento dos realities, a partir dos anos 2000, as modelos e atrizes começaram a ser destronadas. O cenário se tornou mais kitsch. Num domingo de 2001, Silvio Santos pôs no ar a Casa dos Artistas.

De artista ali, só Bárbara Paz, a cantora Patrícia Coelho e, vá lá, Supla poderiam ser considerados artistas. Alexandre Frota, pela capacidade shakespeariana de se reinventar, também se espremeria na categoria. A plêiade se completava com "musas" dos domingos da TV e outros personagens esquecíveis.

Nas outras edições, os artistas eram a Tiazinha e a Feiticeira —personagens eróticas inventadas por Luciano Huck— e o finado cantor Agnaldo Timóteo, o maior cantor romântico do Brasil —segundo ele mesmo.

Ganhadora da primeira edição, Paz foi vista como uma espécie de Cinderela naquele 2001. Era órfã, batalhava pela carreira de atriz, vira no programa uma oportunidade e vivera um romance com um filho do privilégio paulistano.

Mas, aos poucos, foi construindo uma carreira sólida, que culminou no sensível documentário "Babenco - Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou", em tributo ao seu marido, o diretor argentino-brasileiro Héctor Babenco, morto em 2016.

Num país onde os conceitos de erudito e popular na arte e na cultura são completamente manchados, talvez seja a hora seja a hora de começarmos a entender os realities e suas participantes —é de se destacar o número de mulheres revelados por eles— também como um espaço de revelação de talentos.

Afinal, se grandes dramaturgos e atores de teatro fizeram novelas, por que participantes de realities não podem fazer o caminho contrário? O que faz um artista é o percurso, não o sindicato. Ou a panelinha.

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