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'Mirador' joga na cara da classe média o que olhar distraído não chega a ver

Filme de Bruno Costa mostra a vida de lavador de pratos e sua sobrevivência cotidiana, com as suas humilhações e fraquezas

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Mirador

  • Onde Nos cinemas nesta quinta (5)
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Altamar Cezar, Maria Luiza da Costa e Stephanie Fernandes
  • Direção Bruno Costa

O Brasil às vezes é uma coisa estranha: todo dia algum canal esportivo de TV por assinatura exibe o espetáculo deprimente de pobres que se arrebentam para diversão de uma plateia sádica. Não importa o nome do esporte. Não é boxe, que já é violento o bastante. Importa que toda hora aparece nos sites e portais anúncios de brigas, desafios, disputas de campeonato, revanches e coisas do tipo. Importa que nada sabemos sobre essas pessoas, a não ser que têm a cara deformada e os dentes quebrados. Que mais existe a saber?

Bem, é mais ou menos isso que "Mirador" mira: quem são as pessoas com quem nós, da classe média, cruzamos tão continuamente quanto ignoramos?

Pode ser um pouco mais: mesmo nosso cinema não observa, senão muito raramente, os bairros periféricos. Como se vive? Como se sobrevive? O que se come? Onde são as diversões? Etc. Os pobres habitualmente importam mais como marginais ou drogados.

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Cena do filme 'Mirador' (2021), dirigido por Bruno Costa - Divulgação

A paisagem de "Mirador" lembra um momento de "O Invasor". Só que no belíssimo filme de Beto Brant a única função da paisagem era abrigar um matador profissional. Em "Mirador" ela é o lugar onde vive Maycon, misto de lavador de pratos e lutador de boxe. Diga-se com mais exatidão: lavador de pratos e outras atividades passageiras, além de candidato a boxeador.

Maycon também pai. Pois, ao contrário do lugar comum (pai faz o filho e se manda), aqui é a mãe quem desaparece e deixa Malu, a filha de dois anos, aos cuidados do pai. Seguem-se então infindáveis duplas jornadas. Talvez triplas: no restaurante, com a filha, nos treinos da academia.

Existem momentos difíceis e outros felizes. Maycon é um homem comum, um personagem neorrealista sem heroísmo. Fazer uma mamadeira, levar Malu ao médico ou a um parquinho faz parte de sua rotina tanto quanto a batalha para emagrecer e entrar no peso que lhe permita lutar.

Em suma, Maycon não é um personagem interessante. Se "Mirador", ao contrário, é, deve isso à paisagem, aos caminhões, à porta do mercado, à creche, aos caminhões, ao jogo de truco dos amigos. É a sobrevivência cotidiana, com suas humilhações, suas fraquezas. Trata-se de um homem pobre, enfim. É possível lembrar do belo "Arábia", onde é tratada a trajetória de um operário. Mas o filme de Bruno Costa elide até mesmo o aspecto romântico de "Arábia".

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Edilson Silva e Maria Luiza da Costa em cena do filme 'Mirador' (2021), dirigido por Bruno Costa - Divulgação

Não há nada para admirar em Maycon. Nem para odiar. O que se pode admirar em "Mirador" é a fidelidade a um parti pris que é quase o oposto de "Arábia", ou antes: um parti pris que deseja elidir os menores sinais de "appeal" nesse tipo de vida. A vida do homem pobre, em suma.

"Mirador" poupa o espectador dos momentos em que a felicidade se anuncia. Não que se cumpra; apenas se anuncia. A cachaça no bar, um jogo de truco (vemos o amigo jogando, não ele), um jogo de futebol (ele veste a camisa de um time, mas só, mais como uma afirmação de fidelidade ao seu estado natal)... Tudo isso fica de fora.

Essa fidelidade a seu princípio é o que "Mirador" tem de mais forte. Esse princípio mesmo é o que surge como o principal limite do filme, com seu excesso de tempos fracos. Não que fosse preciso muito mais, apenas algumas notações: será que a mulher vai voltar? Será que a briga no restaurante terá consequências maiores? Será que por falta de documentação ele perderá a guarda da filha?

Não que o filme pudesse se dedicar a isso; aí seria outro filme. Essas pequenas notações, ligeiros suspenses, talvez ajudassem a equilibrar esse mesmo filme, com os mesmos princípios, as mesmas ideias e a mesma capacidade de mostrar uma vida que a gente de classe média até pode olhar, quando passa por um bairro pobre a caminho do litoral, digamos, mas não vê. "Mirador", malgrado seu despojamento, possui essa inestimável virtude do cinema: mostrar o que nossos olhos distraídos olham, mas não chegam a ver.

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