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'Terramar' de Ursula K. Le Guin abriu o caminho para 'Harry Potter' na fantasia

Coleção de seis livros, com protagonismo negro e elementos da filosofia oriental, começa a ser relançada no Brasil

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São Carlos (SP)

Muito antes que Hogwarts se tornasse sinônimo de ensino médio para bruxos, uma escola de magia muito diferente nasceu da imaginação da escritora americana Ursula Kroeber Le Guin, morta em 2018.

Os jovens que chegam à ilha de Roke, no coração do mundo-arquipélago de Terramar, aprendem as palavras de uma língua antiga que conferem a eles poder sobre objetos, animais e pessoas, mas descobrem também que cada ato mágico pode afetar o equilíbrio do mundo ao seu redor e abrir rombos no próprio tecido da existência.

capa de livro
Ilustração de Charles Vess para a capa de 'O Feiticeiro de Terramar', livro da escritora Ursula K. Le Guin relançado agora no Brasil pela editora Morro Branco - Charles Vess/Reprodução

As histórias de Terramar, narradas por Le Guin em cinco romances, uma coletânea de novelas e contos que ela escreveu de 1964 até o ano de sua morte, estão ganhando nova edição brasileira, a primeira a trazer todos os volumes do ciclo para o país. O primeiro livro, "O Feiticeiro de Terramar", acaba de chegar às livrarias, com posfácio da autora e ilustrações de Charles Vess —mais conhecido por suas colaborações com Neil Gaiman em obras como "Stardust" e "Livros da Magia".

Em tom brincalhão, Le Guin conta que a série nasceu a partir do convite de um editor, que pedira a ela que escrevesse uma narrativa de fantasia para adolescentes. "Naquela época, os feiticeiros eram todos, mais ou menos, Merlin e Gandalf. Velhos, chapéus pontudos, barbas brancas", escreve ela no posfácio. "Bem, Merlin e Gandalf devem ter sido jovens um dia, certo? E, quando eles eram jovens, quando eram crianças tolas, como aprenderam a ser feiticeiros?"

Se essa foi a premissa inicial, o ciclo se transformou em algo muito mais grandioso e subversivo desde o primeiro livro. A complexidade histórica e cultural imaginada pela autora para o mundo de Terramar é comparável à arquitetada por J. R. R. Tolkien em "O Senhor dos Anéis", mas Le Guin inverte deliberadamente os estereótipos raciais que predominavam na fantasia da época.

Em seus livros, os povos de pele mais escura, que lembram indígenas e africanos do nosso mundo, são os "civilizados", enquanto os "selvagens" têm cabelos louros e aparência europeia.

A escritora Ursula K. Le Guin lê páginas em sua mão e apoia a outra mão sobre uma mesa
A escritora Ursula K. Le Guin - Gorthian/Wikimedia Commons

"Isso causava problemas para ela até na produção das capas, com os editores afirmando que os leitores não estavam preparados para aceitar um protagonista não branco", diz Victor Gomes, publisher da editora Morro Branco, responsável pela nova versão da série no Brasil. "O mais triste é que, mesmo 40 anos depois do lançamento, quando o Studio Ghibli adaptou as obras [em formato de animação], todos os personagens magicamente se tornaram brancos. Esperamos retificar isso agora."

A autora também se afasta das influências medievais europeias ao basear a metafísica da magia de Terramar na ideia do equilíbrio entre princípios opostos, se inspirando em elementos da filosofia oriental, como o taoísmo. Em vez de grandes batalhas, os conflitos do ciclo em geral envolvem perturbações em tal equilíbrio cósmico, seja em grande escala, seja dentro da própria personalidade dos protagonistas.

No primeiro volume, enfrentar essa dualidade interna é um dos desafios de Ged, o "jovem Merlin" de Le Guin, conhecido em vida como Gavião. Em Terramar, com efeito, todos os seres humanos possuem ao menos duas designações, um ou mais apelidos, usados como "nomes externos", e o "nome verdadeiro", que eles ganham num rito de passagem para a vida adulta e que corresponde à essência de cada pessoa, sendo mantido em segredo.

"Quem sabe o nome de alguém tem a vida desse indivíduo sob sua guarda", diz o livro.

Detalhes antropológicos como esse, dando forma à maneira de pensar, à tradição oral e a outros aspectos das culturas do planeta-arquipélago, criam uma ilusão poderosa de um lugar com milhares de anos de história. A epígrafe do livro, por exemplo, é um trecho do mito de criação daquele mundo (inventado, é claro, pela própria Le Guin).

"É o que o crítico Fredric Jameson chama de descontinuidades de gênero. Ao fazer essa alternância entre a narrativa e outros gêneros literários, ela dá conta de explicar a existência de algo tão complexo quando um mundo inteiro", diz a escritora Ana Rüsche, cujo doutorado na Universidade de São Paulo comparou obras de Le Guin e Margaret Atwood.

Os livros finais do ciclo também ajudam a registrar as mudanças no pensamento da autora sobre a questão feminina. No início da saga, apenas os homens são capazes de realizar as formas mais elevadas de encantamentos, e os ditados populares de Terramar dizem coisas como "fraco como magia de mulher" e "perverso como magia de mulher".

"Foi incômodo para ela receber críticas sobre esses elementos justamente por parte do público feminista, mas isso gerou reflexões que permitiram que ela realizasse uma virada na maneira como retratava as mulheres", pondera Rüsche. De fato, as obras mais tardias da série mostram como a exclusão das mulheres no que diz respeito à magia teria sido algo deliberado, e não natural.

Segundo Victor Gomes, a série mostra como a fantasia abre caminhos "para discutir as principais questões que afligem a sociedade contemporânea".

O Feiticeiro de Terramar

  • Preço R$ 54,90 (208 págs.); R$ 38,40 (ebook)
  • Autoria Ursula K. Le Guin
  • Editora Morro Branco
  • Tradução Heci Regina Candiani
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