Uma das possibilidades do cinema é a da criação a partir de situações ou pessoas reais. Com "Cidadão Kane", por exemplo, Orson Welles e o roteirista Herman Mankiewicz tiveram como inspiração o magnata da comunicação William Randolph Hearst, que ficou furioso ao se reconhecer em uma série de circunstâncias mais ou menos criadas para o filme.
Longe de atingir o mesmo estatuto, em "Aline: A Voz do Amor", a atriz e cineasta francesa Valérie Lemercier revela bom humor e talento de encenação ao fazer uma biografia da cantora canadense Céline Dion, aqui metamorfoseada em Aline Dieu.
Não há bem um disfarce. A realizadora assume ter criado situações inspiradas na vida e na obra da famosa cantora, que inicialmente lançava discos em francês, passando logo a gravar discos também em inglês, visando o enorme mercado dos Estados Unidos.
Para salientar o efeito cômico, contudo, a própria Lemercier interpreta a cantora desde a infância, criando efeitos engraçados de inadequação entre sua figura de meia-idade e o comportamento tipicamente infantil de uma criança de 12 anos. É uma maneira de dizer que desde menina a cantora já possuía uma voz privilegiada, goste-se ou não do tipo de música que ela representa.
É também uma bem-vinda liberdade, que deve desesperar os "senhores verossímeis", como dizia Hitchcock. Nestes tempos em que a veracidade é perseguida a todo custo, muitas vezes em detrimento do imaginário, gerando uma enormidade de filmes sem alma, o risco corrido por Lemercier é louvável.
Há piadas com a mudança de nome. Quando o agente chama a cantora criança de Céline, é corrigido prontamente pela mãe, vivida pela divertida Danielle Fichaud. Há também as piadas com o francês que se fala em Québec —vide as inúmeras repetições da maneira de falar Vaticano. Ou a deliciosa brincadeira com o nome do primeiro disco de Céline Dion, "La Voix du Bon Dieu", ou a voz do bom Deus, que no filme vira "La Voix du Bon Dion", cruzando o real e o fictício.
Esse humor, que nunca parece ser realmente ofensivo a Céline Dion, compensa as cenas ridículas em que os responsáveis por fazer estourar a lenda, como também seus parentes, entreolham-se em aprovação ao ver a cantora em performance pública.
Esse tipo de cena de reação, que encontrou há alguns anos o máximo de seu potencial para o patético em "Cisne Negro", de Darren Aronofsky, subestima a capacidade do público de reconhecer se a voz é mesmo bela ou não.
O filme decai também quando a cantora se torna um fenômeno mundial de vendas. Nesse momento, o talento de Lemercier e a simpatia do ator Sylvain Marcel, que interpreta seu marido e agente Guy-Claude, seguram as cenas cotidianas da estrela e as altas doses de sacarina das baladas que ficaram famosas.
Felizmente, Lemercier intercala essas músicas melosas com canções pop tocantes como "Going to a Town", de Rufus Wainwright, e "You Make me Feel (Mighty Real)", na versão de Jimmy Somerville, além de dar o devido destaque a "Ordinaire", imponente obra do repertório mais recente de Céline Dion —suas músicas são cantadas no filme por Victoria Sio.
"Ordinaire", aliás, é a escolhida para encerrar o filme e pode conter também uma mensagem da diretora porque a letra diz "eu não ligo para a crítica; quando canto, é para o público". No francês original, "critique" rima com "public". Estaria Lemercier respondendo às críticas que recebeu por seu longa anterior, o fraco "50 São os Novos 30", da mesma maneira que Céline Dion respondia a seus críticos? Seja o que for, ajuda o filme a ter no todo uma aparência bem digna.
Por Aline, Valérie Lemercier venceu o merecido César de melhor atriz. Como diretora, alterna bons e maus momentos. Quando inspirada, pode fazer uma comédia simpática como "Quadrille", seu primeiro longa, de 1997, ou este surpreendente "Aline – A Voz do Amor", o sexto e último que dirigiu até então.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.