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Amos Gitai leva Palestina e Israel para o bar e prepara um filme com Walter Salles

Com 'Laila em Haifa', na Mostra Israelense de Cinema, diretor vê o multiculturalismo como antídoto possível para os conflitos

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cena de filme

Khawla Ibraheem em cena do filme 'Laila em Haifa', dirigido pelo cineasta israelense Amos Gitai Divulgação

Washington

O premiado cineasta israelense Amos Gitai achava que conhecia sua cidade natal, Haifa. "Não conhece, não", disse a ele a atriz Lamis Ammar, com quem trabalhava. Para convencer o cineasta, Ammar levou Gitai —que dirigiu gente como Jeanne Moreau e Natalie Portman— para passear à noite.

Os dois terminaram a aventura no bar Fattoush, e Gitai se apaixonou pelo lugar. Na beirada do mar Mediterrâneo, numa zona industrial, próxima ao porto da cidade, com a passagem dos trens "marcando o tempo como um metrônomo", ele diz, em entrevista a este repórter. Foi ali que decidiu rodar seu próximo filme, marcado por aquele ambiente. Gitai, de 71 anos, é conhecido pelos longas "Kadosh", de 1999, e "Kedma", de 20 anos atrás, entre outras produções.

O resultado daquela noitada foi o filme "Laila em Haifa", que nesta semana abre a primeira edição da Mostra Israelense de Cinema. Na quinta-feira, Gitai fala ao público em uma transmissão pelo YouTube. Na sexta, o filme estreia na plataforma virtual da mostra, realizada pelo Instituto Brasil-Israel e pelo Sesc São Paulo. O evento, que traz outros cinco filmes, é gratuito.

O cineasta israelense Amos Gitai - Synpase Distribution/Divulgação

"Laila em Haifa" se passa numa única noite no bar Fattoush. O enredo se centra nas histórias de cinco mulheres. O nome do filme parece ser um curioso jogo de palavras, já que Laila é o nome de uma personagem e também significa "noite" em árabe e hebraico, as duas principais línguas de Israel.

A mensagem do filme é clara, quiçá até demais. Haifa é conhecida como uma cidade excepcionalmente multicultural, onde o caldeirão israelense consegue misturar os ingredientes sociais —quase— sem entornar o caldo. "Haifa é uma cidade menos dramática do que Jerusalém ou Tel Aviv", diz Gitai. "É como São Paulo, tem esses elementos de mescla, de vida cotidiana."

Gitai conta que quis jogar o holofote sobre essa cidade, e em especial sobre esse bar, por enxergar ali uma "rica realidade humana". Uma realidade frágil e que não representa todo o país, sim, mas talvez um antídoto para os seus conflitos. "É a única solução contra o racismo e o ódio", afirma.

Histórias de convivência em Israel —um país que ocupa a Cisjordânia e cerceia as liberdades dos palestinos— às vezes tendem à propaganda, ao apagar as tensões. Não é o caso do filme de Gitai.

A primeira cena é ilustrativa disso. Os personagens caminham por uma exposição dentro do bar, vendo fotografias do que o filme enquadra como a resistência dos palestinos a Israel. Um personagem afirma, quase olhando para a câmera, que toda arte precisa ter um viés político.

"Ignorar a política, inclusive, é um gesto político", diz Gitai. "Mas não devemos usar a política de modo instrumental, dar de comer ao espectador com uma colher. Não gosto, por exemplo, quando Michael Moore manipula o público. Eu começo a duvidar das coisas com que antes concordava", afirma, lembrando o documentarista americano de "Tiros em Columbine", de 2002. "É melhor expor a situação numa forma narrativa e convidar o espectador a trabalhar com você."

Gitai trabalha com sutis contradições em "Laila em Haifa". Alguns de seus personagens, como o fotógrafo israelense Gil, transitam entre o hebraico, o árabe e o inglês, às vezes numa mesma frase. Alguns dos festivais que exibiram o filme queriam marcar nas legendas, com cores diferentes, qual língua estava sendo falada em cada momento. Gitai não aceitou. "Seria contra a ideia do filme", diz.

O bar de Haifa é, afinal, esse lugar em que um israelense pode ser um palestino, que pode ser um israelense. Outra vez, o antídoto de que Gitai fala —uma demonstração de que outra realidade é possível, não aquela dos conflitos, atentados, invasões de vilarejos ou destruições de lares.

Gitai é conhecido, entre outras coisas, por tomadas longas, beirando o plano-sequência. Algumas cenas são quase desconfortáveis, de tanto tempo que a câmera pousa em determinado gesto. O cineasta também é famoso por trabalhar com trilogias temáticas. Foi o caso dos filmes "Terra Prometida", de 2004, "Free Zone", de 2005, e "Aproximação", de 2007. "Laila em Haifa" é, de certo modo, a segunda parte do trio inaugurado por "Um Trem em Jerusalém", de 2018.

"Um Trem em Jerusalém" se passava dentro de um bonde cruzando a cidade, da mesma maneira que "Laila em Haifa" se desenrola num único cenário, o bar. Gitai conta que seu próximo projeto deve acontecer numa habitação popular na cidade de Beersheva, no deserto do Neguev.

"É uma trilogia de espaços confinados", diz Gitai. "Essa é uma maneira de dizer 'escute, na modernidade, alguns dos encontros mais poderosos acontecem por acaso'. A humanidade já não vive a vida toda numa mesma vila, encontrando as mesmas pessoas. A sociedade se fraturou."

O cineasta conta, também, que está conversando com o brasileiro Walter Salles para talvez produzir um filme sobre as cartas de sua mãe, Efratia Margalit, nascida na Palestina em 1909. A correspondência de Margalit foi publicada no Brasil em 2019, no livro "Em Tempos Como Estes". "O Walter me convidou para almoçar e me disse que está apaixonado pela minha mãe."

Mostra Israelense de Cinema

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