Quarto livro de Ariana Harwicz publicado no Brasil, "Degenerado" é uma narrativa cortante, que passa por temas sensíveis do debate contemporâneo com intenções, podemos supor, de contestar esquemas e posições preconcebidas. Isso não quer dizer, porém, que se trata de literatura panfletária. Embora seja sempre possível intuir o desejo de provocação, nenhuma bandeira é levantada, exceto a da impossibilidade de se estabelecerem certezas.
A narração é quase toda feita por um homem de 70 anos, morador de uma pequena cidade na França, acusado de estuprar e matar uma criança. A situação narrativa se esclarece aos poucos –primeiro cercado pela vizinhança, que o toma como responsável pelo crime e reage de forma violenta ao ocorrido, ele fala sobretudo diante de uma juíza e um júri, defendendo a si próprio no julgamento.
Não há propriamente andamento narrativo, ao menos não como uma sequência de eventos. O próprio monólogo vai situando o leitor, e alguns elementos externos surgem nas vozes de outros personagens, que se sobrepõem à do narrador-protagonista.
Essa polifonia, que poderia representar uma abertura de perspectiva ou um respiro, acaba por tornar a narração ainda mais claustrofóbica, já que cabe ao leitor criar hipóteses sobre quem fala e com que verdade.
Há, por isso, necessidade de um constante exercício de reflexão, muitas vezes centrado em confrontar a visão da comunidade –"por que você fez isso conosco, ainda tem gente que gosta de você, não pode ser verdade"– e a do narrador –"tem que ser um idiota para fazer isso do que me acusam".
É nesse movimento que a ficção de Harwicz aposta sua força, já que frases suspeitas podem ser ditas pelas vítimas, enquanto o acusado é capaz de pensamentos sensatos. "A culpa é coletiva. Ou a assumimos todos em uníssono num coro de escola, ou a negamos em bloco", afirma, ecoando a visão que correlaciona ocorrência de abusos e estrutura patriarcal.
De maneira análoga, o protagonista revela a sua história sem que a lembrança das violências sofridas chegue a despertar a condescendência do leitor diante do quadro narrativo mais amplo.
Estruturado em torno do ocorrido, o monólogo é atravessado ainda por questões como o preconceito contra imigrantes na Europa, a repressão soviética, os abusos parentais e os estranhos caminhos do desejo.
Ao se definir como "filosoficamente de direita, politicamente anarquista", o narrador ecoa, em seu discurso, posições extremistas que todo leitor haverá de reconhecer como circulantes hoje. "A massa humana conjugada à sua luta por causas e reivindicações sociais dá uma imagem exata da idiotice das pessoas."
Em certo sentido, "Degenerado" repõe a situação narrativa em cuja construção Harwicz havia já se revelado hábil –a construção de sentimentos ambivalentes a partir do olhar de um narrador-personagem vivendo em tensão com a comunidade.
É o que acontecia em "Morra, Amor", o primeiro volume de sua trilogia sobre a maternidade (formada ainda por "A Débil Mental" e "Precoce"), no qual uma mulher vive com intensidade os pensamentos e sentimentos despertados pela condição de mãe, especialmente quando as suas expectativas e seus desejos não correspondem aos socialmente esperados.
Os livros têm em comum ainda a ambientação –a própria autora, aliás, nascida em Buenos Aires e graduada em artes cênicas em Paris, vive numa cidade próxima à capital francesa. Sempre interessada em questionar os laços que unem indivíduo e comunidade, Harwicz amplia, em "Degenerado", seu campo de reflexão, deslocando o centro de atenção dos laços familiares para algumas das consequências desastrosas do tipo de sociedade que desejamos construir.
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