Descrição de chapéu
Livros maternidade

Ariana Harwicz dá um mergulho na mente de um acusado de estupro

'Degenerado' é um monólogo sufocante sem certezas definitivas e que questiona as relações entre criminoso e comunidade

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Luisa Destri

Degenerado

  • Preço R$ 59,90 (128 págs.)
  • Autoria Ariana Harwicz
  • Editora Instante
  • Tradutora Silvia Massimini Felix

Quarto livro de Ariana Harwicz publicado no Brasil, "Degenerado" é uma narrativa cortante, que passa por temas sensíveis do debate contemporâneo com intenções, podemos supor, de contestar esquemas e posições preconcebidas. Isso não quer dizer, porém, que se trata de literatura panfletária. Embora seja sempre possível intuir o desejo de provocação, nenhuma bandeira é levantada, exceto a da impossibilidade de se estabelecerem certezas.

A narração é quase toda feita por um homem de 70 anos, morador de uma pequena cidade na França, acusado de estuprar e matar uma criança. A situação narrativa se esclarece aos poucos –primeiro cercado pela vizinhança, que o toma como responsável pelo crime e reage de forma violenta ao ocorrido, ele fala sobretudo diante de uma juíza e um júri, defendendo a si próprio no julgamento.

mulher balzaquiana de cabelos castanhos sorri
A escritora Ariana Harwicz, que é a favor da descriminalização do aborto - Diego Waldmann/Clarin

Não há propriamente andamento narrativo, ao menos não como uma sequência de eventos. O próprio monólogo vai situando o leitor, e alguns elementos externos surgem nas vozes de outros personagens, que se sobrepõem à do narrador-protagonista.

Essa polifonia, que poderia representar uma abertura de perspectiva ou um respiro, acaba por tornar a narração ainda mais claustrofóbica, já que cabe ao leitor criar hipóteses sobre quem fala e com que verdade.

Há, por isso, necessidade de um constante exercício de reflexão, muitas vezes centrado em confrontar a visão da comunidade –"por que você fez isso conosco, ainda tem gente que gosta de você, não pode ser verdade"– e a do narrador –"tem que ser um idiota para fazer isso do que me acusam".

capa de livro
Capa de 'Degenerado', romance da escritora argentina Ariana Harwicz publicado pela editora Instante no Brasil - Divulgação

É nesse movimento que a ficção de Harwicz aposta sua força, já que frases suspeitas podem ser ditas pelas vítimas, enquanto o acusado é capaz de pensamentos sensatos. "A culpa é coletiva. Ou a assumimos todos em uníssono num coro de escola, ou a negamos em bloco", afirma, ecoando a visão que correlaciona ocorrência de abusos e estrutura patriarcal.

De maneira análoga, o protagonista revela a sua história sem que a lembrança das violências sofridas chegue a despertar a condescendência do leitor diante do quadro narrativo mais amplo.

Estruturado em torno do ocorrido, o monólogo é atravessado ainda por questões como o preconceito contra imigrantes na Europa, a repressão soviética, os abusos parentais e os estranhos caminhos do desejo.

Ao se definir como "filosoficamente de direita, politicamente anarquista", o narrador ecoa, em seu discurso, posições extremistas que todo leitor haverá de reconhecer como circulantes hoje. "A massa humana conjugada à sua luta por causas e reivindicações sociais dá uma imagem exata da idiotice das pessoas."

Em certo sentido, "Degenerado" repõe a situação narrativa em cuja construção Harwicz havia já se revelado hábil –a construção de sentimentos ambivalentes a partir do olhar de um narrador-personagem vivendo em tensão com a comunidade.

É o que acontecia em "Morra, Amor", o primeiro volume de sua trilogia sobre a maternidade (formada ainda por "A Débil Mental" e "Precoce"), no qual uma mulher vive com intensidade os pensamentos e sentimentos despertados pela condição de mãe, especialmente quando as suas expectativas e seus desejos não correspondem aos socialmente esperados.

Os livros têm em comum ainda a ambientação –a própria autora, aliás, nascida em Buenos Aires e graduada em artes cênicas em Paris, vive numa cidade próxima à capital francesa. Sempre interessada em questionar os laços que unem indivíduo e comunidade, Harwicz amplia, em "Degenerado", seu campo de reflexão, deslocando o centro de atenção dos laços familiares para algumas das consequências desastrosas do tipo de sociedade que desejamos construir.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.