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Cinema

Dez anos sem Carlos Reichenbach, e sua obra ainda é um eco do Brasil

Diretor que estrela mostra no Rio de Janeiro tinha generosidade infinita para se relacionar com o cinema e os seus autores

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É impossível para mim falar de Carlos Reichenbach de uma maneira que não seja estritamente pessoal.

Agora, que a mostra "Uma Década sem Carlão", organizada por Ruy Gardnier na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, homenageia a obra do cineasta no momento em que se completaram dez anos de sua morte —em 14 de junho—, me ocorre lembrar de como era difícil o tirar da rua para que começássemos a escrever um roteiro ou argumento de filme.

À medida que caminhava era interrompido por amigos, conhecidos, críticos, outros cineastas. E a cada pessoa que o abordava e perguntava de coisas do cinema ele se detinha, respondia, iniciava uma conversa.

O cineasta Carlos Reichenbach em sua residência, em São Paulo - Rafael Hupsel - 23.dez.08/Folhapress

Essa capacidade quase infinita de se relacionar com qualquer coisa que dissesse respeito a cinema era uma característica que nunca vi semelhante em outra pessoa. Não distinguia entre os que pensavam como ele ou não, os mais importantes ou menos, os de direita ou de esquerda. Havia nele um movimento de enorme gentileza e outro de curiosidade, de atenção ao que se dizia.

Não era diferente com os filmes. Gostava mais de gostar dos filmes dos outros do que dos dele próprio —uma característica bem rara na categoria. Por isso foi um professor de uma ou duas gerações de pessoas talentosas. Não impunha seus gostos, nunca. Apenas os expunha.

Chega a ser curioso que muitos diretores o temessem como diretor de fotografia de seus filmes, pensando que ele poderia interferir na feitura do filme. Nada mais equivocado. Quando fotograva um filme, Carlão queria ver a expressão do pensamento do outro, do diretor.

Suas ideias ele sabia quais eram, e as exporia em seus próprios filmes. Vejamos as obras de um cineasta com que colaborou com frequência, como Jean Garrett —não têm nada a ver com os filmes de Reichenbach.

Não admitia palpite em seu trabalho, mas deixava os colaboradores à vontade para contribuírem. Era preciso entender, no entanto, que isso devia se dar por aproximação às ideias dele, isto é, do autor. Foi um adepto sem restrições da ideia de que os filmes têm um autor, como os livros ou as pinturas.

Cineasta Carlos Reichenbach na rua do Triumpho, em foto feita pelo cineasta e fotógrafo Ozualdo Candeias - Ozualdo Candeias/Reprodução

Imaginou, mais de uma vez, virar produtor. Quando comprou a Jota Filmes, empresa de publicidade, há 50 anos, foi com a ideia de usar sua estrutura na produção de filmes baratos, rodados rapidamente, à maneira do que fazia Roger Corman nos Estados Unidos.

A ideia era propiciar aos amigos e às pessoas em quem reconhecesse afinidade a oportunidade de filmar. Não deu certo. Ele tentaria outra vez, em 1989, quando juntou um grupo de amigos na Casa de Imagens.

A generosa capacidade de escuta, na rua, no set de filmagem, na sala de projeção fez dele também um mestre para mais de uma geração de cinéfilos e cineastas. Sabia escutar, mas também apontar as virtudes que via em certos filmes e cineastas de quem pouco se ouvia falar ou se lia na crítica, mais ocupada com os "grandes nomes".

Foi, em parte, o que prejudicou a compreensão de sua obra. Podia ser, por muitos, aceito como o "bom sujeito" simpático. Mas, se ousasse contratar um ator conhecido para um filme, não faltava quem o classificasse de "comercial" —trabalhou com Cauã Reymond, Betty Faria, Carlos Alberto Riccelli entre outros.

Longe disso. Queria que seus filmes fossem vistos e tentou, desde o fim do século passado, se adaptar a um regime de produções mais caras e cuidadas. Nem por isso abriu mão de suas ideias. Que se reveja seu "Garotas do ABC", capaz de antecipar a onda fascista e a decadência da atividade sindical no Brasil, sem abrir mão do humor e do caráter multifacetado da maioria de seus filmes.

Carlão foi antes de tudo um cinéfilo. Sabia admirar Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Orson Welles, Luiz Sergio Person (que foi seu professor), com a mesma paixão que dedicava a Samuel Fuller —então pouco conhecido— ou Jesús Franco.

O cineasta Carlos Reichenbach, ao lado do cartaz de 'Alma Corsária', dirigido por ele - Adriana Elias - 7.dez.97/Folhapress

Jesús Franco? Ele é horrível —tentei certa vez argumentar. É sim, ele respondia. "Ele é capaz de fazer cem filmes, 97 são péssimos, mas os outros três, geniais." Entendia o cinema como uma arte popular, que devia ser apreciada por todos, sem preconceito. Por isso não se esquivava das cenas de sexo ou de violência. Ao contrário –tudo que fazia parte do repertório popular de seu tempo era caro a ele.

Como repudiava a convenção, usava esse repertório como ponto de partida para explorar os clichês, sem nunca se submeter a eles. Sua rejeição às convenções, ao moralismo, ao atraso da sociedade brasileira o levaram a ter a obra catalogada como "marginal", junto com Sganzerla, Julio Bressane, Andrea Tonacci e outros tantos igualmente vitimados por nosso conservadorismo.

Cena do filme 'Falsa Loira', de 2007, de Carlos Reichenbach - Divulgação

Poucos críticos se atreveram a levar sua obra a sério, como João Carlos Rodrigues. O primeiro prêmio que recebeu, um "especial pela integridade da obra", foi pessoalmente conquistado por Walter Lima Júnior, presidente do júri no Festival de Gramado de 1984, depois da polêmica sessão de "Extremos do Prazer", de que parte dos jurados se retirou antes mesmo do final do filme. O reconhecimento seguinte veio de Catherine Chicot e Hubert Bals, assistente e diretor, respectivamente, do Festival de Roterdã.

Estranhamente, foi mais rápida e fácil a aceitação de seu trabalho no exterior, onde encontrou defensores especialmente entre os críticos do jornal Libération, Serge Daney e Louis Skoreki, e, em menor escala, dos Cahiers du Cinéma.

O cineasta Carlos Reichenbach no encontro dos rios da cidade de Dois Córregos, em São Paulo - Divulgação

Também não é estranho que a atual mostra do MAM tenha como curador Ruy Gardnier, um dos fundadores da revista eletrônica Contracampo, que iniciou uma espécie de revolução na crítica cinematográfica no Brasil desde o fim dos anos 1990 e tirou do limbo alguns dos melhores cineastas brasileiros.

No mesmo dia 14 de junho, data de sua morte, Carlos Reichenbach completaria agora 77 anos. Não é o caso de lamentar a morte prematura —Carlão disse o que tinha a dizer. Mas resta muito ainda a compreender e absorver da tremenda riqueza de sua personalidade, isto é, de sua obra.

Uma Década Sem Carlão

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