Descrição de chapéu Livros

Nélida Piñon doa sua biblioteca de 8.000 livros para o Instituto Cervantes

Coleção reúne exemplares autografados por nomes como Jorge Amado, Toni Morrison e Gabriel García Márquez

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

Por amor ao avô, Daniel, o primeiro de seus antepassados a cruzar o Atlântico, a escritora Nélida Piñon nunca requereu a nacionalidade espanhola. Acreditava que a sua travessia não havia sido em vão e que ela, mesmo tendo passado parte da infância na Galícia rural como uma pastorinha, precisava seguir com seu legado no Novo Mundo.

Nem mesmo o vínculo profissional e cultural que estabeleceu com a Espanha —como única autora (e autor) do Brasil a fazer parte do chamado "boom latino-americano" liderado por sua agente Carmen Balcells, que morreu em 2015— a demoveu da lealdade familiar.

Foi preciso que o governo espanhol, por mérito, concedesse a ela a nacionalidade, em 16 de novembro de 2021, para que Piñon passasse a ser brasileira e espanhola, como seu avô. "Senti uma emoção imensa. Não por mim. Tudo que me acontece penso nos meus grandes mortos. Eu sou muito ligada aos meus mortos. E eu achei que eles gostaram."

Retrato de mulher branca idosa sentada em poltrona numa sala; há um quadro atrás dela
Nélida Piñon, que doou sua biblioteca ao Instituto Cervantes, no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

Agora, é a vez de Piñon retribuir de forma dupla —até mesmo tripla, já que estamos falando, no caso espanhol, de um estado plurinacional. A escritora acaba de doar 8.000 volumes de sua biblioteca pessoal para o Instituto Cervantes, no Rio de Janeiro. "A Espanha sempre foi muito generosa comigo."

Entre os inúmeros prêmios que a escritora coleciona está precisamente o Príncipe das Astúrias, o principal do país, quando, em 2005, deixou para trás nomes como Amós Oz, Paul Auster e Philip Roth. Até hoje, nenhum outro brasileiro recebeu o feito.

A coleção reúne exemplares autografados por nomes como Jorge Amado, Toni Morrison, Gabriel García Márquez e outros que cruzaram o caminho de Piñon.

Nélida Piñon, Cacá Diegues e Zuenir Ventura na cerimônia de posse de Gilberto Gil na Academia Brasileira de Letras
Nélida Piñon, Cacá Diegues e Zuenir Ventura na cerimônia de posse de Gilberto Gil na Academia Brasileira de Letras - Mauro Pimentel/AFP

A biblioteca, que levará o nome da escritora, será também a principal coleção de obras do galego no Brasil. O idioma, que Piñon aprendeu em menina enquanto pastoreava ovelhas e vacas nos anos 1940 e participava de danças e missas, é a raiz da origem do português. Os exemplares raros ficarão num andar à parte e estarão disponíveis apenas a pesquisadores.

A autora teve também de se despedir de suas paixões, como sua coleção de obras de Homero. Ficou apenas um exemplar. "Quando eu doei, perguntei ‘vou poder ler meus livros?'." Diante da resposta positiva, disse "então, pode levar todos".

De sua grande paixão entre os autores brasileiros, Machado de Assis, ficou uma coleção de suas obras completas. "De Machado não me despeço nunca, é o passaporte brasileiro que eu tenho." E aí a prosa muda de rumo. "O Brasil está proibido de fracassar. Ninguém tem Machado de Assis impunemente", afirma.

"Ele tinha tudo em contra. Epilético, autodidata, pobre, mulato, negro. Como é possível que Machado pôde chegar às culminâncias da criação brasileira sendo admirado por todos e considerado em vida o maior escritor e [tendo] presidido a Academia [Brasileira de Letras], onde morreu e teve um velório extraordinário, a ponto de fazerem uma máscara mortuária dele? Quem mais teve máscara mortuária no Brasil?"

E foi na casa criada por Machado de Assis –que Piñon presidiu em seu centenário, a primeira mulher no posto– que a autora viveu recentemente uma alegria e uma tristeza. Esta foi a perda de sua amiga, a escritora Lygia Fagundes Telles, que morreu neste ano. "Para mim é muito triste, eu não me conformo com a perda dos meus companheiros."

A felicidade foi o ingresso da amiga Fernanda Montenegro entre os imortais. A esse respeito, Piñon conta que fez questão de não acompanhar as críticas que proliferaram nas redes na ocasião da posse. Seja porque alguns a acusavam de não ser escritora –como também disseram acerca do poeta e compositor Gilberto Gil–, seja porque defendiam o ingresso da escritora Conceição Evaristo.

"Ela [a Fernanda] tem livros publicados. Ela se inseriu na categoria de grandes notáveis. A dramaturgia é literatura, só que falada, o ator é o porta-voz dessa literatura", afirma. "O Machado [na época da criação da ABL] só queria criadores e o [Joaquim] Nabuco defendeu a presença dos notáveis e isso predominou."

Piñon afirma que gostaria de ver Evaristo na ABL. Para tanto, ela precisaria se candidatar de acordo com o rito previsto, comunicando, dentro do prazo, a cada um dos membros, o seu interesse em fazer parte da casa.

A autora é, ao lado de Jorge Amado (e Paulo Coelho), o nome mais internacionalizado da nossa literatura. Além de ser parte do "boom" latino-americano, rompeu uma série de fronteiras –e abriu caminhos para escritores brasileiros.

Foi a primeira autora latino-americana a ganhar os prêmios Juan Rulfo, o Nobel da América Latina, e foi fundamental na promoção da literatura brasileira no exterior, apresentando nomes como Machado de Assis a autoras como Susan Sontag.

Quem a ouve contar, sempre de modo afável, suas histórias com os maiores nomes da literatura brasileira e universal (sobretudo hispano-americana) do século 20, pensa que Piñon percorreu uma estrada reta, sobre roldanas. Ledo engano.

Logo após a publicação de seu livro de estreia, "Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo", de 1961, Piñon recebeu críticas duras. "Tive campanhas de escritores que sistematicamente me atacavam. Teve um escritor que dizia ‘nunca seja como Nélida Piñon’. Mas eu nunca desisti. Nunca fiz disso matéria de ressentimento", conta.

"Quando você tem um trabalho sério, as coisas ocorrem. As coisas têm seu tempo. A minha obra está aí. É impressionante como os jovens estão estudando ‘A República dos Sonhos’." O romance, que já vai completar quatro décadas, parte do passado de sua família para contar a história da imigração galega e do Brasil. Com traduções pelo mundo todo, será agora lançado na China.

Os convites para aulas e palestras no exterior nos anos 1970 eram um jeito de pagar as contas. Nos jantares, ela conta que se sentava na cadeira mais distante dos principais nomes da época. A cada vez que o microfone caía na sua mão, via uma oportunidade de fazer sua voz ser notada —e ampliar seu espaço. "Eu era uma brasileirinha, meu bem."

Apesar das conquistas, Piñon acredita que seu reconhecimento dentro de seu próprio país é aquém ao que tem fora do Brasil. "Eu acho que sou respeitada. Se eu tivesse ganhado hoje o Príncipe das Astúrias, a reação teria sido diferente." E, dizendo como alguém que jamais perde a elegância, "você está distraindo, querendo que eu fale". "Não estou me exibindo."

Rimbaud perdeu a vida por delicadeza.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto informava incorretamente o ano de lançamento do primeiro romance de Nélida Piñon como 1995. O correto é 1961. O trecho foi corrigido.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.