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'Nureyev' prioriza lado encantador do bailarino russo e ignora polêmicas

Documentário dos irmãos Jacqui e David Morris mostra os dois lados do dançarino, traçando cronologia de sua vida e carreira

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Nureyev

  • Classificação 14 anos
  • Produção Reino Unido, 2019
  • Direção Jacqui Morris e David Morris

Rudolf Nureyev foi um monstro da dança. E monstro aqui é uma hipérbole tanto para seu talento, sua figura pública e vida fascinantes quanto para seu narcisismo selvagem.

"Nureyev", o documentário feito pelos irmãos Jacqui Morris e David Morris, mostra os dois lados, mas não chega a surpreender com o lado B da estrela; pende mais para os aspectos encantadores do ídolo.

Seguindo cronologicamente sua vida e carreira, o longa intercala imagens de pinturas, cenas de época em preto e branco e coreografias com trechos da literatura —Yeats, Lewis Carroll, Shakespeare, Camus, Bob Dylan.

O bailarino russo Rudolf Nureyev durante apresentação em Paris, em 1972
O bailarino russo Rudolf Nureyev durante apresentação em Paris, há 50 anos - AFP

A narrativa começa com o próprio Nureyev contando, numa entrevista dos anos 1970, como nasceu num trem transiberiano, durante a Segunda Guerra, e sobre sua infância como refugiado —a vida do bailarino russo desde sempre se pareceu com um bom roteiro de filme.

Uma das sacadas dos diretores foi quebrar a narrativa quase linear com pequenas coreografias representando as passagens da vida de Nureyev –bailarinos contemporâneos dançam num cenário fantástico, um palco no meio da floresta ou, em alguns momentos, escadarias cobertas de neve.

Outro trunfo são as imagens de arquivo mostrando, de forma mais ou menos fragmentária, todo o contexto dessa história –camponeses e tanques de guerra, trens e estações, Lênin e Stálin, festas londrinas e protestos em Paris, iates na costa francesa e delegacia em San Francisco, Gorbachev e Ronald Reagan.

Para os amantes da dança, o melhor de tudo são os trechos de arquivos com Nureyev no palco ou na sala de ensaio, muitos deles até então inéditos. E não só ele. Podemos ver Margot Fonteyn, a companhia de Martha Graham, Erik Bruhn e outros figurões dançando, em imagens históricas.

Há também uma sequência com as famosas fotografias do bailarino feitas por Richard Avedon. É seguida por um texto com uma frase de Avedon sobre a sessão de fotos –"uma espécie de orgia narcisista de uma pessoa só". Um pouco antes, no filme, Nureyev comenta sobre o fotógrafo ser alguém que realmente o entendeu.

Os depoimentos de ex-colegas, bailarinos, coreógrafos, historiadores e amigos fogem do esquema, tradicional em documentários, de "talking heads" —eles não aparecem, apenas ouvimos suas vozes sobrepostas às cenas de dança ou imagens de época. Um recurso interessante, mas às vezes não fica claro quem está falando. É especialmente confuso quando uma dessas personagens (por exemplo, uma ex-bailarina) narra trechos da autobiografia de Nureyev.

Os depoimentos às vezes são laudatórios demais ou complacentes com o lado mais trash da estrela da dança. Nureyev manipulava colegas e benfeitores, socava funcionários e era um predador —uma história famosa é o caso que teve com a mulher de seu professor e protetor Alexander Pushkin, quando este levou o então jovem estudante Nureyev para morar em sua casa, em São Petersburgo.

Esse lado surge meio discretamente no documentário, em alguns comentários diluídos em imagens glamorosas de espetáculos ou festas. Pushkin nem aparece (o professor tem destaque em outro filme sobre Nureyev, "O Corvo Branco", de 2019, dirigido por Ralph Fiennes).

Somos absorvidos com prazer pelo mito ao ver Nureyev duelar na barra com a paixão de sua vida, o bailarino norueguês Erik Bruhn, sexualizar a grande dame Margot Fonteyn no "Lago dos Cisnes", sorrir com superioridade ao ser fotografado e fichado em uma delegacia em San Francisco. Dá para entender porque o bailarino, em seu auge, era assediado por fãs nas ruas de Londres e foi uma das figuras que tornou o balé pop, nos anos 1970.

Se ele não foi, na época, tão popular como os Beatles ou Jesus Cristo, chegou perto. No final do documentário, assistimos Nureyev entrando no estúdio do The Dick Cavett Show (há vários trechos dessa entrevista na TV, todos ótimos). Vestido com botas e jaqueta com estampa de cobra, o bailarino se senta na cadeira e aguarda longos minutos, enquanto não param os aplausos. "Não sei o que fazer", diz Cavett. "Nem o Mick Jagger foi tão aplaudido."

Diz a lenda que Jagger e Nureyev tiveram um caso e depois nunca mais se falaram. O integrante dos Rolling Stones não aparece no documentário nem na boa trilha sonora, que passa de Leonard Cohen e Velvet Underground a Tchaikóvski. É a composição do russo para o "Lago dos Cisnes" que cria o drama perfeito para o clímax final, quando Nureyev assiste, praticamente deitado na primeira fila da plateia, sua última criação para o Ópera de Paris, pouco antes de morrer em decorrência da Aids, em 1993.

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