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Cinema aborto

'O Acontecimento' filma aborto de Annie Ernaux como thriller visceral

Filme baseado no romance autobiográfico da escritora francesa aposta em longas sequências para acuar protagonista

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Maria Caú

O Acontecimento

  • Quando Sessões no Festival Varilux até terça-feira (5/7). Em cartaz nos cinemas a partir de quinta (7/7)
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Anamaria Vartolomei, Kacey Mottet Klein, Luàna Bajrami
  • Produção França, 2021
  • Direção Audrey Diwan
  • Link: https://variluxcinefrances.com/2022/

Anne é uma estudante promissora, vértice intelectual do seu grupo de amigas, elogiada pelos professores. Com o fim do ano letivo, ela se prepara para prestar exames e continuar seus estudos avançados de literatura, quando descobre que está grávida.

Sozinha num país em que o aborto é um crime passível de ser punição, Anne lança mão das poucas alternativas à sua disposição para não deixar que essa gravidez não planejada destrua seus planos futuros.

mulheres se abraçam
Cena do filme 'O Acontecimento', da francesa Audrey Diwan, vencedor do Leão de Ouro em Veneza - Divulgação

Uma história com essa premissa poderia se passar no Brasil contemporâneo, em que a legalização do aborto permanece fora da pauta política e uma juíza estampou as manchetes recentes por ter mantido num abrigo uma criança de 11 anos, vítima de estupro, a fim de evitar que um aborto legal fosse realizado.

Ou quem sabe nos Estados Unidos, que na última sexta-feira (24) suspendeu o aborto como um direito constitucional, a partir de um forte movimento para restringir o acesso à interrupção voluntária da gravidez.

Ambientando a trama na França do início dos anos 1960, a diretora Audrey Diwan, nascida após a legalização desse direito em território francês, constrói uma narrativa que discute habilmente, através do jogo com um passado com elementos nostálgicos —os inícios do rock, a emergência da cultura da juventude—, a realidade presente do aborto clandestino.

Se o filme é capaz de impactar as plateias europeias —o longa ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza do ano passado—, a experiência de assisti-lo num país que ainda regula rigidamente os corpos das mulheres traz uma dimensão mais visceral de identificação à tona.

Com ares de thriller e uma trilha sonora inquietante, o filme segue a evolução da gravidez de Anne — contabilizada por cartelas que marcam as semanas e ampliam a tensão da corrida contra o tempo— à medida que ela busca ajuda para realizar o procedimento, quase sempre encontrando violentas recusas.

Esse pesadelo kafkiano vai se intensificando, com Anne recorrendo a medidas progressivamente mais desesperadas, em sequências violentas, que remetem a outro filme premiado sobre o tema: "Quatro Meses, Três Semanas e Dois dias", do romeno Cristian Mungiu, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2007.

O tabu que rodeia a escolha e o ato se faz presente nos diálogos, com a palavra aborto sendo quase sempre substituída por eufemismos, como que para livrá-la de seu enorme peso, a começar pelo título —"O Acontecimento; no francês original, "L´Événement", ou o evento, homônimo ao livro no qual o filme é baseado, o romance autobiográfico de Annie Ernaux.

De fato, Anne pouco discute o tema, pois não encontra interlocutores dispostos a ouvi-la —neste cenário, é emblemático que o homem que a engravidou só apareça no terço final do filme. Ainda assim, a honestidade da jovem é corajosa e dura, e ela chega a dizer a seu professor que não pudera se concentrar nos estudos porque vinha sofrendo da "doença que atinge apenas as mulheres e as transforma em donas de casa".

A fotografia, com tom orgânico e planos longos, assinada por Laurent Tangy, traz uma câmera que parece acuar a protagonista, permanecendo colada ao seu corpo, muitas vezes às suas costas, perseguindo-a pelos espaços que adentra e nos quais não encontra refúgio —o quarto que divide com uma colega hostil, a casa dos pais, os corredores do ambiente estudantil.

A atuação de Anamaria Vartolomei no papel principal é marcada por um sofrimento contido e furioso, prestes a eclodir. Anne não questiona a legitimidade de sua escolha: trata-se de um interdito, ela o sabe, mas lhe parece absurdo perder o poder sobre seu corpo, e ela tenta reclamá-lo de volta para si.

Se Anne e suas colegas discutem Sartre, Camus e o comunismo do pós-guerra, elas estão de fato questionando os limites da liberdade nessa França fervilhante e selvagem onde as mulheres ainda são cidadãs de segunda classe. Uma França capaz de comover o espectador nacional —ou a espectadora— por sua estranha semelhança com o Brasil contemporâneo, ao menos no que diz respeito aos direitos das mulheres sobre seus corpos.

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