Anne é uma estudante promissora, vértice intelectual do seu grupo de amigas, elogiada pelos professores. Com o fim do ano letivo, ela se prepara para prestar exames e continuar seus estudos avançados de literatura, quando descobre que está grávida.
Sozinha num país em que o aborto é um crime passível de ser punição, Anne lança mão das poucas alternativas à sua disposição para não deixar que essa gravidez não planejada destrua seus planos futuros.
Uma história com essa premissa poderia se passar no Brasil contemporâneo, em que a legalização do aborto permanece fora da pauta política e uma juíza estampou as manchetes recentes por ter mantido num abrigo uma criança de 11 anos, vítima de estupro, a fim de evitar que um aborto legal fosse realizado.
Ou quem sabe nos Estados Unidos, que na última sexta-feira (24) suspendeu o aborto como um direito constitucional, a partir de um forte movimento para restringir o acesso à interrupção voluntária da gravidez.
Ambientando a trama na França do início dos anos 1960, a diretora Audrey Diwan, nascida após a legalização desse direito em território francês, constrói uma narrativa que discute habilmente, através do jogo com um passado com elementos nostálgicos —os inícios do rock, a emergência da cultura da juventude—, a realidade presente do aborto clandestino.
Se o filme é capaz de impactar as plateias europeias —o longa ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza do ano passado—, a experiência de assisti-lo num país que ainda regula rigidamente os corpos das mulheres traz uma dimensão mais visceral de identificação à tona.
Com ares de thriller e uma trilha sonora inquietante, o filme segue a evolução da gravidez de Anne — contabilizada por cartelas que marcam as semanas e ampliam a tensão da corrida contra o tempo— à medida que ela busca ajuda para realizar o procedimento, quase sempre encontrando violentas recusas.
Esse pesadelo kafkiano vai se intensificando, com Anne recorrendo a medidas progressivamente mais desesperadas, em sequências violentas, que remetem a outro filme premiado sobre o tema: "Quatro Meses, Três Semanas e Dois dias", do romeno Cristian Mungiu, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2007.
O tabu que rodeia a escolha e o ato se faz presente nos diálogos, com a palavra aborto sendo quase sempre substituída por eufemismos, como que para livrá-la de seu enorme peso, a começar pelo título —"O Acontecimento; no francês original, "L´Événement", ou o evento, homônimo ao livro no qual o filme é baseado, o romance autobiográfico de Annie Ernaux.
De fato, Anne pouco discute o tema, pois não encontra interlocutores dispostos a ouvi-la —neste cenário, é emblemático que o homem que a engravidou só apareça no terço final do filme. Ainda assim, a honestidade da jovem é corajosa e dura, e ela chega a dizer a seu professor que não pudera se concentrar nos estudos porque vinha sofrendo da "doença que atinge apenas as mulheres e as transforma em donas de casa".
A fotografia, com tom orgânico e planos longos, assinada por Laurent Tangy, traz uma câmera que parece acuar a protagonista, permanecendo colada ao seu corpo, muitas vezes às suas costas, perseguindo-a pelos espaços que adentra e nos quais não encontra refúgio —o quarto que divide com uma colega hostil, a casa dos pais, os corredores do ambiente estudantil.
A atuação de Anamaria Vartolomei no papel principal é marcada por um sofrimento contido e furioso, prestes a eclodir. Anne não questiona a legitimidade de sua escolha: trata-se de um interdito, ela o sabe, mas lhe parece absurdo perder o poder sobre seu corpo, e ela tenta reclamá-lo de volta para si.
Se Anne e suas colegas discutem Sartre, Camus e o comunismo do pós-guerra, elas estão de fato questionando os limites da liberdade nessa França fervilhante e selvagem onde as mulheres ainda são cidadãs de segunda classe. Uma França capaz de comover o espectador nacional —ou a espectadora— por sua estranha semelhança com o Brasil contemporâneo, ao menos no que diz respeito aos direitos das mulheres sobre seus corpos.
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