Descrição de chapéu Televisão

Olivier Assayas volta a 'Irma Vep' em nova série, debate cinema e critica Bolsonaro

Cineasta francês dá sequência ao filme de 1996 e impregna trama da HBO Max com situações de sua vida pessoal

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cannes (França)

Vestindo um macacão preto que contorna e se agarra sedutoramente a seu corpo, Irma Vep saltita entre os telhados de Paris, como um gato entre uma e outra transgressão. Sua identidade já pertenceu a uma das primeiras mulheres fatais do cinema, a francesa Musidora, e depois à chinesa Maggie Cheung. Mas agora é a sueca Alicia Vikander que veste o look misterioso, numa nova série da HBO Max.

"Irma Vep", que assim como o filme de 1996 usa o nome da protagonista como título, traz Olivier Assayas de volta ao clássico do cinema mudo francês "Os Vampiros", de 1915. Mais uma vez, acompanhamos um diretor que quer regravar o filme –mas se engana quem pensa que a obra da HBO Max é um remake.

Na verdade, este novo "Irma Vep" é uma sequência para o de 1996. Quase três décadas depois daqueles acontecimentos, vemos o mesmo cineasta, René Vidal, na difícil empreitada de apresentar o filme mudo a uma nova geração. E, assim como o próprio Assayas, ele o faz em forma de série.

Alicia Vikander em cena da série "Irma Vep", criada pelo cineasta Olivier Assayas
Alicia Vikander em cena da série 'Irma Vep', criada pelo cineasta Olivier Assayas - Divulgação

O cartaz da obra entrega logo de cara o que é este novo projeto do cineasta francês, com os dizeres "a vida imita a arte". Embora, neste caso, faça mais sentido pensar que a arte imita a vida, já que "Irma Vep" passa por vários episódios que marcaram a trajetória de Assayas nos últimos 26 anos, como seu efêmero casamento com Cheung.

"Eu claramente não estava em paz com meu ‘Irma Vep’ original", disse o criador, roteirista e diretor da nova série em conversa durante o Festival de Cannes, no mês passado, onde ela foi exibida. De óculos de sol e vestindo uma camisa despojada, ele observava o mar da costa francesa enquanto refletia sobre o trabalho e a própria indústria do cinema, cutucada com frequência ao longo dos oito episódios.

"Se eu estou refazendo ‘Irma Vep’, isso significa que algo precisa de encerramento, seja a trama em si ou pessoalmente. A verdade é que eu estou perdido", brinca o cineasta, que se viu pressionado por um agente americano a deixar um pouco os pequenos filmes franceses de lado, como "Personal Shopper" e "Acima das Nuvens", para fazer algo maior.

Ele resistiu, mas então percebeu que seu longa de 1996 era como "uma tela em branco" que poderia ganhar novas cores sempre que o cinema entra em crise, como é o caso atual, acredita. A trama, afinal, mostra o caos por trás de uma pequena produção francesa, do estrelismo envaidecido dos atores ao controle obsessivo do diretor, dos romances às picuinhas de bastidores.

"Eu acredito que filmes são assombrados por espíritos. Não no sentido literal, mas por serem habitados pelo passado, por memórias, e isso está presente no novo ‘Irma Vep’, de forma consciente ou não. Todos os filmes criam fantasmas, e esse foi o caso do longa de 1996. Agora, eu posso olhar para eles de outros ângulos, com a ajuda do tempo."

Ao longo dos episódios que estreiam agora, a equipe por trás do remake de "Les Vampires" reflete sobre o estado do cinema ao ser confrontada por assombrações passadas e futuras. É o caso dos algoritmos, do politicamente correto, das plataformas sob demanda, dos filmes de super-heróis e de tantos outros temas latentes da indústria que invadem "Irma Vep" ora de maneira reflexiva, ora com certa ironia.

Cena do filme "Irma Vep" (1996), de Olivier Assayas
Maggie Cheung em cena do filme 'Irma Vep', de 1996, de Olivier Assayas - Divulgação

O personagem René Vidal, por exemplo, insiste que não está gravando uma série, mas um filme serializado. Assayas, também, acredita que este é o caso da nova produção –"eu não sou um cara que faz séries, eu faço filmes", diz. E, na conversa ou por meio das telas, critica a tendência atual de esticar histórias para se adequarem a um formato que, hoje, parece ser mais popular que o bom e velho cinema.

"A maneira de ver filmes mudou, a maneira de pensar filmes mudou, as fronteiras entre o que é cinema e o que não é também mudou. Há gente hoje criando obras com base em algoritmos. Isso se tornou parte da reformulação industrial do cinema pela qual passamos, e não me anima nada. Eu sou fã do mainstream, claro, mas ele se tornou refém do mercado. E só há cinema de verdade quando há liberdade."

Assayas afirma que alguns filmes lançados diretamente no streaming nos últimos anos, como "Roma", de Alfonso Cuarón, e "O Irlandês", de Martin Scorsese, são obviamente cinema, mas vê com ressalva o espaço que as plataformas têm dado a esses cineastas mais autorais. Ele acredita que isso acontece em troca de um "selo de qualidade", visando a consolidação dessas marcas, e que não será mais necessário a longo prazo.

Questionado se não é contraditório alfinetar e tirar sarro do streaming e do pensamento mercadológico da indústria enquanto lança um remake de um filme de quase três décadas, numa plataforma como a HBO Max, Assayas diz que não. O cineasta conta que jamais faria "Irma Vep" para uma empresa como a Netflix, mas se diz confortável com a liberdade criativa que foi dada a ele na concorrente –ele não deixa claro, no entanto, o que realmente separa uma da outra.

A série aterrissa no sob demanda três anos depois do último filme do francês, "Wasp Network: Rede de Espiões", que curiosamente ganhou distribuição da Netflix em diversos países, incluindo o Brasil. O longa teve coprodução brasileira, na figura do carioca Rodrigo Teixeira, de quem Assayas é amigo.

Em suas conversas, o cineasta tem se informado sobre o estado atual da cultura no Brasil. Diante de um governo de direita como o de Bolsonaro, um autoproclamado "esquerdista antitotalitário" como ele não esconde o incômodo.

"Eu estou sabendo o quão difícil está sendo", diz ele, sobre filtros na Ancine e paralisações de editais. "Acima de todos os problemas universais, o cinema, no caso de vocês, ainda entra em rota de colisão com um regime horrível, desprezível. Na França, ainda bem, não temos esse problema. Mas para vocês é mais um desafio em meio a tantos outros que o cinema já enfrenta."

Irma Vep

  • Quando Estreia nesta segunda (6), na HBO Max
  • Elenco Alicia Vikander, Vincent Macaigne e Vincent Lacoste
  • Produção EUA, 2022
  • Criação Olivier Assayas
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.