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Cinema

'Peter von Kant' altera Fassbinder, mas celebra autor com bom drama

François Ozon escolhe mostrar romance homossexual para tratar das nuances do amor, mas tropeça no espetáculo

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Peter von Kant

  • Quando Sessões entre quinta (23) e 5/7 durante o Festival Varilux de Cinema Francês 2022
  • Elenco Denis Ménochet, Isabelle Adjani, Khalil Ben Gharbia
  • Produção França, 2022
  • Direção François Ozon
  • Link: https://variluxcinefrances.com/2022/
  • Programação completa https://variluxcinefrances.com/2022/

Desde o título "Peter von Kant" é uma homenagem a "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", no momento em que o filme de Rainer Werner Fassbinder chega aos 50 anos. Mas há coisas que mudam. O diretor agora é François Ozon, que há pouco fez um filme sobre eutanásia –"Está Tudo Bem"–, e um pouco antes sobre o pós-Primeira Guerra Mundial –"Frantz"–, entre outros. De certa forma é preciso ver os dois filmes em conjunto. Ou seja –ao de Fassbinder, um autor, sucede agora o de um artesão.

Mas não um mau artesão, apesar dos altos e baixos quase escandalosos ao longo de sua carreira. Em todo caso, Ozon não é bobo. E a ideia de transformar o amor de duas mulheres do original (Margit Carstensen e Hanna Schygulla, ambas magníficas no filme) pelo de dois homens é oportuna.

Denis Ménochet e Khalil Ben Gharbia em cena de 'Peter Von Kant', de François Ozon
Denis Ménochet e Khalil Ben Gharbia em cena de 'Peter Von Kant', de François Ozon - Divulgação

E não são dois homens quaisquer. Denis Ménochet é Peter, um cineasta de sucesso, gordo, inchado de bebida, desleixado na aparência e caótico na existência pessoal para quem tudo parece se transformar quando encontra Amir, vivido por Khalil Ben Gharbia, sensual jovem de origem árabe por quem Peter se deixa fascinar de imediato.

À parte essa mudança, Ozon segue quase palavra por palavra o original de Fassbinder, com o mérito de pôr frente a frente dois homossexuais sem recorrer a trejeitos secundários e clichês. O amor entre dois homens é um amor com especificidades, claro, mas o que está em questão é o amor —o que é e seus efeitos sobre os humanos.

Fassbinder desvelou em seu filme (e na peça teatral) todas as nuances da relação amorosa –a ansiedade, o medo, a paquera, a humilhação, o prazer, a obsessão, a insônia, a entrega, o porre, o abandono, a euforia, a esperança, a dor, o bem, o mal, entre outras.

Ozon tenta seguir Fassbinder, e o faz com dignidade. É verdade que a composição de Ménochet, por brilhante que seja, nos dispersa um pouco da trama. Não raro dá para pensar, por exemplo, no quanto vida e obra de Fassbinder coincidem. Quer dizer, somos levados ao que, no caso, menos interessa.

No mais, Ozon conduz seu filme com firmeza, ao menos até o quarto final, quando os dois filmes divergem claramente. Fassbinder opta pela exposição magistral, e o mais discreta possível, da dor de Petra. É quase como um cientista diante de seu objeto.

Ozon, ao contrário, promove um show de gritos e choros no momento crucial do drama e o reduz, nesse momento, a um dramalhão tão ruidoso quanto pouco interessante.

Talvez a mudança de tom tenha a ver com a época em que cada filme foi feito. O de Fassbinder tem certa frieza como marca, no sentido em que busca mostrar a dinâmica amorosa em toda a sua complexidade ao espectador, sem implicar o público diretamente.

Em 2022 tal atitude talvez não fosse a mais cautelosa. A opção de Ozon corresponde a um retorno ao mundo do espetáculo. Observamos não mais o amor, nem mesmo as personagens, mas os atores. Vejam como Ménochet está bem, vejam Hanna Schygulla, que surpresa agradável, agora no papel de mãe de Peter et cetera. Uma estética neoclássica, talvez.

O final dos dois filmes evidencia a diferença entre os dois cineastas. É quando os enquadramentos de Fassbinder mais se sobressaem (eles são melhores o tempo todo, observemos, basta atentar ao uso dos manequins da designer de alta costura, tão semelhante por vezes às próprias personagens).

Mais do que isso, é quando melhor sobressai o quanto Fassbinder soube absorver as lições de seu mestre, Douglas Sirk –no uso das cores, da luz, na secura das atrizes. Tudo lembra o cinema de Sirk, mas tudo é sempre original. Nada, em momento algum, sugere uma imitação de Sirk.

Ozon vai igualmente a Sirk, o que é quase obrigatório. No entanto, se em certos momentos existe o posicionamento do ator atrás da janela, o azul intenso, a luz semelhante, os galhos de árvore balançados pelo vento, tudo isso também remete a Douglas Sirk, mas apenas de maneira exterior. Podemos lembrar que tal coisa está em "Tudo que o Céu Permite", ou em "Palavras ao Vento". Em suma, o que vemos são tiques, procedimentos, imitação.

Isso não quer dizer que "Peter von Kant" seja um mau filme, longe disso —é obra mais que digna de um bom artesão. O problema de "Peter" é ser imediatamente, e de maneira quase obrigatória, comparável ao filme de um autor e cineasta de gênio. Talvez Ozon chegue a um público maior, o que é bom, entre outras, porque finalmente se começa a tratar o amor entre pessoas do mesmo sexo como amor, e não como desvio.

Mas não se pode comparar "Peter" a "Petra". Até porque em "Petra" o amor, no sentido de paixão, é sempre desvio da norma, sejam os parceiros de que sexo forem. O amor para Fassbinder é trágico; para Ozon, é apenas dramático.

(Ou seja, podemos dizer que "Peter" é um filme muito bom, no mesmo sentido em que "Top Gun: Maverick" é um filme muto bom, um espetáculo bem-sucedido e agradável de ver —cada um, claro, à sua maneira.)

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