Descrição de chapéu Onde se fala português

Remédio para piada racista não é a censura, defende Ricardo Araújo Pereira

Humorista português, que agora lança no Brasil livro com dezenas de crônicas, critica debate raso sobre humor

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O humorista português Ricardo Araújo Pereira Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

Provocar o riso e nada além disso. É como o português Ricardo Araújo Pereira, que agora lança no Brasil seu livro "Estar Vivo Machuca", define a função do humorista, o que, segundo ele, pode até parecer óbvio, mas nos últimos tempos é algo que se torna cada vez mais escanteado e, ao mesmo tempo, distorcido.

"Continuo convencido de que minha profissão serve para produzir o som da gargalhada. Subir ao palco para falar a coisa certa é muito fácil", diz ele, que é também colunista deste jornal. "Repare que na expressão ‘humor político’ a segunda palavra é apenas um adjetivo. O substantivo ali é ‘humor’. Isso é o que interessa."

Ainda assim, Pereira não deixa de apreciar e até mesmo mergulhar nesse nicho da comédia. Exemplo disso é o próprio "Estar Vivo Machuca", que reúne várias sátiras políticas —das quais muitas estão relacionadas ao cenário brasileiro, com tiradas envolvendo nomes como Michel Temer e Eduardo Cunha.

O livro, publicado pela primeira vez em Portugal, há quatro anos, reúne dezenas das crônicas de Pereira publicadas neste jornal e pela revista portuguesa Visão. Os escritos tratam de vários assuntos, que vão de reflexões banais sobre o cotidiano a chavões pop das redes sociais.

A nova versão de "Estar Vivo Machuca", que traz uma apresentação da escritora e também colunista deste jornal Tati Bernadi, chega às prateleiras brasileiras semanas depois de o autor, popularmente conhecido como RAP, liderar pela segunda vez a lista das "personalidades com quem os portugueses mais sentem empatia", nas pesquisas da Marktest.

"As pessoas que moram comigo dizem que se esses estudos fossem feitos lá em casa, o resultado seria bastante diferente", brinca o humorista, que está no Brasil desde a semana passada, quando voltou a apresentar o espetáculo "Um Português e Um Brasileiro Entram no Bar…", numa curta temporada, em que ele e Gregorio Duviver trocam piadas sobre diferenças culturais entre Brasil e Portugual, além de comentarem o clássico debate sobre limites da comédia.

Discussão essa, aliás, que, aos olhos de Pereira, está cada vez mais rasa. "É um terreno minado", diz ele. "De um lado, dizem que a cultura do cancelamento se impõe a todos e que é uma forma de censura da qual ninguém escapa. Do outro, dizem que ninguém é efetivamente censurado e que a comédia continua a reforçar determinados estereótipos. E é possível que haja algo de verdadeiro em ambos."

O problema desse embate, segundo o português, é o mesmo que ele enxerga em parte do humor político –uma crescente deturpação do que se entende por humor. Para exemplificar o pensamento, ele lembra uma das polêmicas mais comentadas do ano, o tapa de Will Smith em Chris Rock, na última edição do Oscar.

O humorista, que fundou o grupo Gato Fedorento —principal inspiração do Porta dos Fundos—, conta que pouco após o caso tomar as redes sociais e jornais do mundo, vários jornalistas o questionaram sobre o ocorrido e, para sua surpresa, as perguntas eram sobre o teor da piada de Rock, que antes de apanhar havia debochado da calvície de Jada Pinkett Smith, mulher de Will Smith que sofre de uma doença autoimune.

"É como se eu tivesse assistido a um Oscar e as pessoas a outro. Fiquei perplexo, porque o que vi foi alguém fazendo uma piada e, depois, sendo agredida", afirma Pereira. "Will Smith deveria ter sido expulso [da cerimônia]. Não merecia ter continuado lá só para receber o Oscar."

Segundo o português, isso aconteceu porque é cada vez mais comum que a comédia seja associada à violência, o que ele classifica como "extraordinariamente perigoso".

"Veja bem, a comédia não é só flores. É claro que pode haver humoristas que desejam fazer piadas que não são só ironias sobre racismo, mas sim, racistas. Agora, o remédio para isso é desligar a televisão, fechar o jornal, ou sair do espetáculo."

Ainda nesse raciocínio, o humorista critica as tentativas de algumas personalidades políticas americanas em barrar o stand-up "Jimmy Carr: His Dark Material", que agitou as redes no início do ano, depois de o comediante Carr receber uma enxurrada de críticas por uma das piadas na obra.

Na anedota, Carr sugeriu que muito se fala dos "6 milhões de vidas judaicas perdidas" durante o Holocausto, mas pouco se fala dos ciganos que morreram nesse período, o que, nas palavras do humorista britânico, foi um ponto positivo do nazismo.

"Ora, a plateia riu e, evidentemente, porque sabia que ele não falava sério. As pessoas tinham consciência de que estavam num espetáculo de comédia", diz Pereira. "Se aquilo fosse apenas uma declaração na qual o humorista acredita, não teria graça. A única razão pela qual a plateia riu é porque sabia que foi enganada pelo humorista. Como a morte de milhares de pessoas pode ser algo positivo?"

Mesmo que não seja um adepto de piadas ácidas como as de Carr, que com frequência está envolvido em polêmicas desse tipo, o português gosta de vez ou outra caçoar de traços da cultura do Brasil —e também da de seu país—, mas diz que não compreende a chamada síndrome de vira-lata aqui presente.

"Há séculos que o humor brasileiro é extraordinário", diz Pereira. "Ao menos do ponto de vista cultural, é mais do que evidente que o Brasil não tem nada do que se envergonhar. Muito pelo contrário. Há muito para vocês se orgulharem."

Assinantes da Folha terão desconto na compra online do livro, autografado pelo autor aqui.

Estar Vivo Machuca

  • Quando A partir de 2 de julho
  • Preço R$ 74 (264 págs.)
  • Autor Ricardo Araújo Pereira
  • Editora Tinta-da-China Brasil
  • Observação Assinantes da Folha terão desconto na compra online do livro, autografado pelo autor
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