Descrição de chapéu
Livros Artes Cênicas

Ricardo Araújo Pereira é humorista perfeito, mas há barreira no Brasil

Complexo de vira-lata do brasileiro faz com que o português não seja levado a sério, especialmente o lusitano

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O Arlindo Cruz tem um disco chamado "Sambista Perfeito". Sempre sonhei em ter essa autoestima. É preciso ter muito talento, mas também ser sambista —aos comediantes essa alcunha não seria permitida. Imagina se batizasse meu show de "humorista perfeito".

Pra ser justo com Arlindo, a comparação não se sustenta. Primeiro, não sou nenhum Arlindo Cruz da comédia. Estou mais pra um Belo —feio, controverso, perseguido (com razão) pela Justiça. Segundo, o título de Arlindo não faz menção a si próprio mas a uma faixa do disco que descreve aquilo que seria o sambista ideal. "Elegante do jeito Paulinho/ cativante do jeito Martinho/ ser malandro e contagiante do jeito Zeca Pagodinho." Ou seja, Arlindo Cruz.

Os humoristas Ricardo Araújo Pereira e Gregorio Duvivier na peça 'Um Português e Um Brasileiro Entram num Bar' - Álvoro Isidoro/Divulgação

Dá pra imaginar como seria o humorista ideal? O humorista perfeito teria o poder de síntese de Millôr Fernandes, mas escreveria crônicas como Verissimo, teria a versatilidade de tipos de um Marcelo Adnet com a acidez de uma Dorothy Parker, a cultura de um Miguel Esteves Cardoso com a pungência de um Richard Pryor, a contenção de um Raul Solnado com o corpo de um Jacques Tati, o "wit" de um Oscar Wilde com o surrealismo de uma Tatá Werneck, a empáfia de um Sacha Baron Cohen com a autoironia de uma Fran Lebowitz.

Posso parar por aqui. Ao contrário de Arlindo, não preciso imaginar. O humorista perfeito já existe, está vivo, e mora em Portugal. Sim, olha que sorte, o humorista ideal, platônico, prototípico, não somente existe como fala a nossa língua, e inclusive escreve neste jornal. Não há no mundo humorista mais perfeito que João Pereira Coutinho. Não! Que Ricardo Araújo Pereira.

Não há nada, no terreno do humor, que Ricardo não faça à perfeição. Criou o Gato Fedorento, grupo de humor português, um Porta dos Fundos muito anterior ao Porta dos Fundos —todo português e alguns brasileiros, como eu, conhecem, de cor, uma dúzia de esquetes do grupo.

Ricardo escreve, na Visão, crônicas espetaculares toda semana e apresenta, hoje, o programa mais visto de Portugal, onde entrevista —e constrange— toda a classe política. É tipo um Greg News, só que menos partidário, e com muito mais audiência. Como se não bastasse, Ricardo escreveu o melhor livro de teoria humorística já escrito, "A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar". Ninguém —Freud, Bergson, Cícero— entendeu tão bem como funciona uma piada por dentro.

Ricardo só tem um empecilho pra sua aceitação no Brasil, a barreira da língua. O brasileiro não costuma levar a sério aquilo que é dito em português —especialmente se for dito com sotaque lusitano. É um desdobramento do complexo de vira-lata.

Se nós somos uma bosta, o povo que nos inventou também há de ser, e nossa língua idem. Resultado –preferimos ler legendas a ouvir nossa própria língua falada com outro sotaque. Nossa Netflix tem uma infinidade de comediantes medíocres falando inglês. Não encontrei nem sequer um português. Pior pra gente. Talvez quando Ricardo fizer um especial em inglês o brasileiro comece a ouvir.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.