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'Top Gun: Maverick' mostra o medo que os EUA têm do avanço da China e da Rússia

Tom Cruise é metáfora de potência que busca exercitar a nostalgia e não tem mais coragem de dar nome ao seus inimigos

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James Crabtree
Financial Times

​O mais recente blockbuster de Tom Cruise, "Top Gun: Maverick", chegou às salas de cinema com um timing geopolítico perfeito –o presidente Joe Biden se reuniu com líderes de Austrália, Japão e Índia em Tóquio na terça-feira retrasada, depois de uma visita à Coreia do Sul.

O presidente americano queria reassegurar os parceiros do país do compromisso de Washington para com a região, agora que as atenções americanas estão sendo cada vez mais atraídas para a sangrenta e já longa Guerra da Ucrânia.

Que momento seria melhor, portanto, para uma exibição vulgar de poderio brando americano nas salas de cinema do planeta, oferecendo uma visão clara da longevidade e da vitalidade da competência militar do país?

Tom Cruise em cena do filme 'Top Gun: Maverick' - Paramount Pictures/Divulgaçao

O "Top Gun: Ases Indomáveis" original, lançado em 1986, foi tanto um enorme sucesso de bilheteria quanto um hino ao poderio naval e aéreo dos Estados Unidos na era Reagan. Dirigido por Tony Scott, o filme se tornou tanto o maior sucesso de bilheteria daquele ano quanto uma das maiores bilheterias da história do cinema.

Diálogos do filme —como "você pode voar comigo quando quiser" e "negativo, Ghost Rider, não há vaga para você na sequência de aterrissagem"— se tornaram parte permanente da cultura popular. E o filme transformou Cruise num dos astros mais bem sucedidos dos Estados Unidos nas bilheterias, posição que ele persistentemente reteve praticamente desde então.

"Top Gun - Ases Indomáveis" também surgiu num momento de avanço na supremacia mundial dos Estados Unidos, o que deu ao filme uma pungência geopolítica especial. O domínio que ele conquistou nas bilheterias surgiu um ano depois que Mikhail Gorbachev se tornou secretário geral do Partido Comunista da União Soviética e quando o equilíbrio de poder entre as duas superpotências virou decisivamente em favor dos americanos.

Com as feridas deixadas pela derrota no Vietnã praticamente curadas, a metade da década de 1980 marcou o início de um longo período de domínio pelos Estados Unidos, sustentado pela forma de poderio militar que o alter ego cinematográfico de Cruise representava com tamanha autoconfiança.

O filme teve ressonância especial na Ásia, além disso, a começar já por sua tomada inicial, que mostra o porta-aviões USS Enterprise navegando pelo oceano Índico. A conclusão vê o personagem interpretado por Cruise, Pete "Maverick" Mitchell, combatendo contra caças MiG-28 de um inimigo desconhecido, mas cuja pintura parece distintamente norte-coreana.

Agora, passados 36 anos, num momento no qual os Estados Unidos estão se preparando para uma nova era de competição militar com a China, seria razoável imaginar que a continuação do filme de Cruise ostentasse a mesma autoconfiança e o mesmo orgulho patriótico.

Na reportagem do Financial Times sobre o filme 'Top Gun: Maverick', quadro compara as forças navais de China e EUA, quando do primeiro filme e agora - Reprodução

Curiosamente, no entanto, a realidade é que "Top Gun: Maverick" é um blockbuster de tom razoavelmente ansioso, repleto de dúvidas sobre a durabilidade do poderio americano e que serve, de muitas maneiras, como uma elegia quanto ao declínio relativo dos Estados Unidos.

Dúvida não é aquilo que as plateias cinematográficas esperam de Cruise. E, de fato, pelo menos superficialmente a continuação exibe muito da masculinidade arrogante que caracterizava o filme precedente.

De novo equipado com sua jaqueta de pilotagem, óculos de aviador e motocicleta Kawasaki Ninja, Cruise se vê convocado a voltar a servir no programa Top Gun, mais formalmente o Programa de Instrução de Táticas de Caça e Ataque da Marinha dos Estados Unidos, uma escola de elite para pilotos em Miramar, no estado da Califórnia.

A despeito de seu talento indubitável como piloto, a patente de Maverick não reflete sua competência, um fato lamentado no começo do filme por um superior exasperado, interpretado por Ed Harris. "Você não consegue promoções, você não se decide a pedir reforma, você se recusa a morrer", Harris reclama. "A esta altura, você deveria ser pelo menos contra-almirante. Como você explica isso?" Cruise abre um sorriso. "É um dos mistérios da vida, senhor."

É melhor não pensar demais na trama do filme, que envolve Cruise treinando uma nova geração de aviadores para derrotar um país renegado cujo nome nunca é dito, e que parece determinado a obter armas nucleares. Como disse Maverick no primeiro filme, "lá em cima, você não tem tempo para pensar". "Se você parar para pensar, você morre."

O mais importante para a maioria dos espectadores são as sequências aéreas, que são verdadeiramente empolgantes. Cruise é conhecido em Hollywood por sua dedicação a cenas de ação realistas e faz pessoalmente cenas para as quais muitos outros atores recorreriam a dublês.

Na franquia "Missão Impossível", ele salta de edifícios e se pendura de aviões. No novo filme, ele conduziu seus companheiros de elenco em voos sacrificados em jatos pilotados por militares, que causaram contorções nos rostos dos astros por causa da intensa força gravitacional. "Trabalhamos com a Marinha", disse Cruise, em San Diego, na recente estreia do filme a bordo do porta-aviões USS Midway. "Todos os voos que você vê no filme são reais."

Mas a realidade que se vê em "Top Gun: Maverick" é notável menos pelas fantasias quanto ao poderio dos Estados Unidos do que pelos temas de ansiedade. Parte disso envolve Cruise. No filme original, ele tinha 24 anos. Agora, tem 59, embora esteja muito bem conservado para um homem chegando à idade de aposentadoria.

O posicionamento cuidadoso das câmeras permite que ele se sustente bem em uma partida de futebol americano contra homens com metade de sua idade —uma citação reverente à célebre cena da partida de vôlei na praia em que ele aparece sem camisa, no filme original, hoje vista como um clássico homoerótico.

Mesmo assim, não há como disfarçar a passagem do tempo, no caso de Cruise. O mesmo se aplica a Val Kilmer, que retoma seu papel como Tom "Iceman" Kazansky, exceto que, desta vez, como um almirante adoentado, nos dias finais de sua vida.

O filme é razoavelmente casto, mas as ocasionais cenas de amor têm um toque de comercial de Viagra. Cruise é um ícone da masculinidade americana e sua perda de energia inevitavelmente traz à memória um tempo em que tanto ele quanto seu país eram mais jovens e mais enérgicos. Fica claro que alguma coisa foi perdida.

Assisti a "Top Gun: Maverick" em sua recente estreia em Singapura, num cinema lotado de militares americanos entusiásticos, que começaram a aplaudir e comemorar já nas cenas de abertura, quando a trilha sonora facilmente reconhecível surge dos alto-falantes.

O presidente americano, Joe Biden, nos preparativos para retornar de sua primeira viagem à Ásia como governante dos EUA - Saul Loeb - 24.mai.22/AFP

Falando pouco antes do filme, e ostentando óculos em estilo "Top Gun", Jonathan Kaplan, embaixador dos Estados Unidos em Singapura, vinculou o filme diretamente ao papel que os Estados Unidos e suas Forças Armadas desempenham na Ásia como guardiões da "ordem mundial baseada em regras".

Muitos milhares de marinheiros e aviadores navais americanos trabalham em toda a região, disse Kaplan, "para garantir paz, segurança e um Indo-Pacífico livre". O personagem de Cruise foi sempre um receptáculo curioso para representar essa forma de poderio americano e de respeito às regras, especialmente se levarmos em conta sua inclinação a descumprir ordens. Mas a premissa do primeiro filme mesmo assim continuava a ser a de que homens como Maverick permitiam que os Estados Unidos e suas Forças Armadas patrulhassem e controlassem o mundo.

Na continuação, tudo isso parece menos seguro, tanto por causa da preocupação com o declínio na competência tecnológica americana quanto pela obsolescência intrínseca de pilotos como Maverick. A sequência de abertura do filme mostra o contra-almirante Chester "Hammer" Cain, interpretado com impetuosa rouquidão por Ed Harris.

O almirante, que os seus comandados chamam de "drone Ranger", quer substituir os pilotos por capacidades autônomas de ataque aéreo acionadas por inteligência artificial. "O futuro está chegando", ele diz a Maverick, em tom provocador. "E você não é parte dele."

Isso não é inteiramente exato, já que o poderio aéreo tradicional continuará a ter papel importante a desempenhar em qualquer conflito plausível envolvendo forças americanas na Ásia. Ainda nesta semana, China e Rússia enviaram bombardeiros capazes de carregar armas nucleares estratégicas até perto do espaço aéreo do Japão, aparentemente em uma demonstração de força concebida como resposta à visita de Biden a Tóquio, que Pequim e Moscou entenderam como provocação.

Mas a visão de um futuro no qual os aviões de combate não serão tripulados tampouco pode ser tratada como ficção científica, como prova o sucesso dos "drones" turcos Bayraktar TB2 nos céus da Ucrânia. O personagem de Harris na verdade reflete as ambições de muita gente nos altos escalões da defesa americana, que considera que o investimento rápido em tecnologia militar é o melhor caminho para que os Estados Unidos mantenham sua atual dominância militar.

Da esquerda para a dirita, o primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida, o presidente americano, Joe Biden, e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, no evento de lançamento do Quadro Econômico Indo-Pacífico, o IPEF, em Tóquio - Jonathan Ernst - 23.mai.22/Reuters

Há um aspecto mais amplo a considerar quanto a isso. Elbridge Colby trabalhou no Departamento de Defesa americano, como subsecretário assistente de Defesa, e ajudou a produzir a influente Estratégia de Defesa Nacional de 2018, que alterou a postura estratégica dos Estados Unidos, substituindo a atenção ao terrorismo e apontando para uma nova era de competição entre as grandes potências.

"Nós deveríamos receber com agrado o retorno de ‘Top Gun’, porque traz uma visão daquilo que realmente precisamos na defesa dos Estados Unidos", ele afirma. "Os filmes de guerra da década de 2010 se passavam todos nas montanhas do Afeganistão ou nas ruas de Bagdá. Mas agora vivemos uma era na qual os Estados Unidos precisam investir em tecnologia nova mas na qual também precisaremos de mais porta-aviões e aviões para a região do Indo-Pacífico, a fim de ajudar a deter a ascensão da China."

Muitos estrategistas americanos esperam que seu país consiga repetir seu sucesso da década de 1980, que Colby descreve como "a década mais bem-sucedida na história militar dos Estados Unidos". O período envolveu pesado investimento em capacitação militar e terminou com o colapso dos rivais soviéticos.

"O apelo de ‘Top Gun’ é o de que nós desejamos ser fortes —não por vaidade, mas sim para garantir uma boa paz", ele diz. "E, por isso, sim, precisamos de novos ‘drones’, mas também precisamos investir em muitas outras coisas."

Algo que passa sem menção explícita no filme é que a China, a maior fabricante mundial de "‘drones", pode bem sair vitoriosa de qualquer disputa tecnológica sobre o futuro do poder aéreo. E temas semelhantes de ansiedade tecnológica e declínio militar incipiente surgem em outros pontos do filme.

O "Top Gun" original mostrava Cruise pilotando um caça F-14, já aposentado da frota, e sua continuação envolve principalmente o F/A-18 Super Hornet, um modelo de jato mais recente, introduzido no final da década de 1990. Mas, desde o começo, Cruise e seus alunos são alertados de que os aviões não tripulados do inimigo provavelmente serão aparelhos "de quinta geração", o que significa modelos avançados desenvolvidos nos últimos dez anos ou pouco mais.

Embora o filme não mostre aviões chineses, a força aérea chinesa é uma das poucas no planeta a contar com aviões desse tipo —além, é claro, das Forças Armadas americanas. O mais avançado dos aviões de combate chineses dessa espécie, o caça "stealth" [invisível para radares] J-20, conhecido como "Mighty Dragon", frequentemente patrulha os céus sobre o mar do sul da China, e o estreito de Taiwan, um importante ponto potencial de confronto em qualquer futuro conflito entre as superpotências.

É claro que "Top Gun: Maverick" não ousa pôr Cruise em combate contra adversários identificados como chineses. Em lugar disso, o filme foi realizado levando plenamente em conta as sensibilidades chinesas. A Tencent Pictures, produtora e distribuidora de cinema controlada pela gigante da tecnologia Tencent, de Shenzhen, na China, anunciou um investimento em "Top Gun: Maverick", em 2019.

A empresa se retirou discretamente do projeto naquele mesmo ano, de acordo com uma reportagem do The Wall Street Journal. Observadores atentos perceberam rapidamente que até mesmo o trailer do filme parece ter sido montado a fim de evitar causar ofensa a Pequim. Algumas imagens do filme estavam em circulação em 2019 —seu lançamento foi muito postergado em função da pandemia— e mostravam Cruise usando a mesma jaqueta de piloto que ele usava no original.

Desta vez, porém, dois bordados que traziam as bandeiras do Japão e de Taiwan nas costas da jaqueta original foram substituídos por símbolos ambíguos de cores semelhantes, uma mudança que muita gente supôs ter sido adotada para evitar qualquer possibilidade de incomodar os vigilantes censores chineses.

"Top Gun: Maverick" dificilmente está sozinho em seu esforço para evitar material que possa cair mal junto ao governo ou às audiências cinematográficas da China. O filme "007 – Sem Tempo para Morrer", da franquia de James Bond, teve destino semelhante, recentemente, e o mesmo se aplica a muitos outros filmes de ação nos quais a presença de um vilão chinês poderia acrescentar um frisson de realismo geopolítico.

Executivos de Hollywood há muito se recusam a retratar personagens chineses como inimigos, porque isso geraria o risco de barrar seu acesso ao imenso mercado cinematográfico da China. De fato, é preciso recuar mais de duas décadas, a "Jogo de Espiões", de 2001, e também dirigido por Tony Scott, para encontrar uma grande produção de Hollywood que pelo menos resvale em retratar o governo chinês de modo desfavorável.

Se observarmos esse tipo de decisão com algum carinho, podemos imaginar que seja parte de um esforço para evitar inflamar qualquer futuro conflito. Mas o resultado faz com que "Top Gun: Maverick" tenha sequências de ação realistas mas relações internacionais completamente falsas. Um filme que tem tanto medo de nomear seu inimigo mais provável demonstra não dispor da espécie de confiança que o personagem de Cruise personifica.

"Top Gun: Maverick" tampouco está sozinho em temer o eclipse tecnológico dos Estados Unidos diante do rápido avanço chinês. Temas semelhantes são proeminentes em "2034", romance publicado recentemente por Elliott Ackerman, veterano das Forças Armadas americanas, e pelo almirante reformado James Stavridis.

Os atores Val Kilmer (à esq.) e Tom Cruise em cena do filme 'Top Gun: Ases Indomáveis', de Tony Scott - Divulgação

Livres da autocensura imposta por Hollywood, os autores estavam aptos a pelo menos imaginar o que poderia acontecer em caso de um confronto futuro entre os Estados Unidos e a China com relação a Taiwan. Logo no começo da história, eles imaginam o roubo de um F-35, um jato de combate americano de quinta geração, por um grupo de intrusos cibernéticos, enquanto hackers chineses paralisam completamente o governo dos Estados Unidos.

Ao longo do livro, a dependência excessiva dos Estados Unidos com relação à tecnologia é apontada como uma fraqueza que os rivais do país, tecnologicamente ainda mais astutos, são capazes de explorar.

Temas semelhantes fazem de "Top Gun: Maverick" em boa medida um exercício de nostalgia, no qual pilotos à moda antiga, voando em aviões tradicionais, terminam por provar seu valor apesar de tudo que existe contra eles. Nostalgia desse tipo provavelmente é algo que as audiências receberão com agrado, não menos porque muitas das pessoas que curtiram o primeiro filme quando eram adolescentes agora, como Cruise, já chegaram confortavelmente aos 50 anos.

Mas em termos militares a visão que o filme propõe é cada vez mais anacrônica. Combates entre jatos militares quase nunca acontecem, em conflitos modernos. A maioria dos planejadores militares que estão contemplando conflitos na Ásia concentra suas atenções em uma visão da guerra futura que virá repleta de tecnologias novas. O futuro está chegando, de fato, e aviadores navais audaciosos que pousam jatos velozes em porta-aviões, terão papel muito menos importante do que tiveram no passado.

O filme recua a uma era geopolítica mais simples, igualmente, quando os Estados Unidos eram uma potência dominante sem rival que se aproximasse de sua força. Hoje, em lugar de uma União Soviética em declínio, os americanos enfrentam dois adversários determinados, a China e a Rússia. Como aponta a versão 2018 da Estratégia de Defesa Nacional do Pentágono, "o desafio central para a prosperidade e segurança dos Estados Unidos é o ressurgimento de competição estratégica em longo prazo por potências revisionistas".

Diante de um desafio como esse, os Estados Unidos estão se tornando um tipo mais ansioso de superpotência, preocupada com o relativo declínio de seu poderio. Tanto em seu personagem principal envelhecido quanto no equipamento antiquado que ele pilota, "Top Gun: Maverick" oferece um retrato estranhamente preciso dessa vulnerabilidade americana. Cruise continua a ser uma figura charmosa e a que muita gente quer assistir, e o ator tenta com todo afinco demonstrar que, como seu país, ele continua a ser a força que um dia foi. Poucos espectadores —seja em Pequim, seja em Washington— se deixarão convencer disso.

Tradução de Paulo Migliacci

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