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Ana Cristina Cesar segue um mistério em 'Amor Mais que Maiúsculo'

Cartas guardadas por cinco décadas mostram assombro da poeta em estado bruto, sem resolver nada

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Ligia Gonçalves Diniz

Professora de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais

Amor Mais que Maiúsculo - Cartas a Luiz Augusto

  • Preço R$ 84,90 (344 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Ana Cristina Cesar
  • Editora Companhia das Letras

Em 1979, Ana Cristina Cesar publicou um livrinho de cinco páginas intitulado "Correspondência Completa".

Nele, a remetente Júlia reclama sobre escrever para dois tipos extremos de leitores –um que lê "pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biográficos"; e outro que "me lê toda como literatura pura e não entende as referências diretas". Não é preciso dizer que a correspondência, que não era completa, brincava com uma carapaça ficcional.

Desde sua estreia, em "Cenas de Abril", do mesmo ano, se demonstravam a confluência e a crise que seriam depuradas em "A Teus Pés", de 1982, e afetariam gerações de poetas no Brasil. Entre o escrito e o vivido, a poesia de Cesar não se resolve —mas quer conversar.

Mais de 40 anos se passam e então chega uma coleção enorme de conversas, uma correspondência completa, de fato. Guardadas por cinco décadas, as cartas que a então intercambista Ana Cristina Cesar enviou a seu namorado de adolescência, Luiz Augusto, são enfim publicadas, e uma pergunta soa no ar –finalmente entenderemos o mistério da poeta, que se matou no auge, aos 31 anos?

Leitor atento, o crítico Sérgio Alcides afirmou certa vez que a poesia de Cesar vive sempre sob o risco de armadilhas —a redução ao biográfico e confessional, ao pop, ao feminino. "Amor Mais que Maiúsculo", com cartas de 1969 a 1971, parece ser presa fácil de todas essas ciladas. Sua missivista, contudo, nunca foi ingênua, nem mesmo ao escrever seus "tiamos" saudosos ao namorado exilado na Alemanha.

O que as mais de 300 páginas mostram é o mesmo assombro, agora em estado mais bruto, diante da tensão entre vida e linguagem que já conhecemos. Recém-chegada ao Reino Unido, ela escreve em suas primeiras linhas a Luiz Augusto –"não sei mais escrever nem pensar nem ser sem ser" e, logo depois, "não sei mais sentir com as primeiras e últimas intensidades".

Aos que esperariam encontrar o confessional e o biográfico desnudados, a declaração serve de aviso –essas são cartas de uma escritora preocupada em fazer convergirem o vivido e o escrito.

O amor adolescente, no esplendor e no desespero comuns a todos os mortais, aparece mais como catalisador da escrita de Ana Cristina Cesar do que como objeto dela. Compreendendo Luiz Augusto como um interlocutor à altura, a jovem se exercita, mas a correspondência vai perdendo força à medida que o casal se afasta.

"Esta carta tem uma grande vantagem. Está ‘mal escrita’", escreve ela no último envio. É bem diferente do tempo em que ela pedia "desculpe o uso de palavra tão antiestética".

O prazer que tiramos da leitura das cartas não é, naturalmente, só "estético". Dá gosto também acompanhar o momento em que ela descobre Dylan Thomas –"é genial, eu sei, mas eu não entendo nada!"– e Maiakóvski –"tenho a tentação lúbrica de não devolver o livro"–, ou fica obcecada com a "Antígona" de Anouilh com a mesma intensidade com que se encanta com "Abbey Road" e a voz de Joan Baez.

É comovente, ainda, ver a adolescente se desesperando com as notícias que recebe acerca do endurecimento da ditadura brasileira, ao mesmo tempo que sabe aproveitar o momento em que pode se "despreocupar, ter insônias quase à toa".

Suas cartas trazem relatos factuais —episódios de sexismo, discussões políticas, a vida cultural londrina— que dão cor ao período da contracultura e da Guerra Fria. Essas páginas contrastam, em parte, com as linhas em que descreve a angústia de não conseguir "viver o minuto presente com uma sofreguidão arregalada". Ambas as facetas mostram que a autora, embora insegura, já tinha um estilo irresistível.

As cartas juvenis não interessarão, portanto, apenas a conhecedores da obra de Ana Cristina Cesar. Poderão, aliás, frustrar aqueles que querem desvendar os seus mistérios. Apesar dos trechos em que celebra ter conseguido viver instantes de "desmistificação", a imagem que fica da autora é a de alguém que tenta lidar com a percepção de que "decorar esses grandes livros é viver, e não o contrário".

Isso tudo equivale a dizer que "Amor Mais que Maiúsculo" é muito bem-vindo, pois não resolve nada. E o leitor ganha mais uma Ana Cristina Cesar com quem pode conversar.

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