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Bienal do Livro esquece as histórias negras para enaltecer o colonizador

Nada contra Portugal, mas trazer apenas três escritores de ex-colônias não está de acordo com uma era de reparações

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Chama atenção o motivo pelo qual a literatura de Portugal foi escolhida como a homenageada da 26ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que começou no último sábado e vai até domingo. Motivo da escolha: as celebrações do bicentenário da Independência do Brasil, que se comemora este ano.

Para tanto, uma comitiva de 19 escritoras e escritores portugueses, todos devidamente brancos, desembarcou na festa do mercado literário brasileiro. A curadoria portuguesa, "em nome da diversidade", somou estranhamente a essa lista o nome de três escritores negros não portugueses, nascidos em ex-colônias de Portugal —a moçambicana Paulina Chiziane, o angolano Kalaf Epalanga e o timorense Luís Cardoso.

Público durante o primeiro dia da Bienal do Livro de São Paulo, realizada no Pavilhão de Exposições do Expo Center Norte - Adriano Vizoni - 2.jul.22/Folhapress

Antes mesmo de tratar do tanto de tokenismo encerrado nessa "soma" de negros, é preciso fazer a pergunta que não quer calar —a justa homenagem, para a ocasião, não seria à literatura de países africanos de expressão portuguesa? Por que homenagear o colonizador e não a narrativa literária dos povos sacrificados pela colonização?

Afinal, os tempos são de intensificação do pensamento pós-colonial, de consolidação de teorias cujas palavras-chaves são decolonização, justiça social, reparação, direitos humanos e civis, incluídos aqui, ainda hoje, o direito dos povos indígenas e negros usurpados e massacrados nos genocídios produzidos pela colonização europeia branca.

A independência do Brasil não se desvincula da escravidão negra: nada mais justo que a opção fosse colocar em cena, neste momento, escritores dos países de onde vieram os negros escravizados aqui e alhures pelo império português.

Que se desse destaque à poesia da Guiné-Bissau, à prosa de Cabo Verde, às narrativas das revoluções de Moçambique e Angola por independência. Que se divulgassem as biografias dos expoentes da luta africana por libertação e soberania —Samora Machel, Agostinho dos Santos, Amilcar Cabral. Nada mais acertado do que divulgar hoje, à juventude brasileira, a história dessas nações numa feira de livros em São Paulo.

Mas o que se fez foi o contrário, uma revisita ao colonialismo português. De tal modo que esta homenagem à literatura portuguesa opera como uma violência simbólica à história da nossa independência. E, sobretudo, reflete a visão eurocêntrica, subalterna, ainda dominante nos círculos culturais brasileiros dominados por uma branquitude afeita à "colonialidade do poder", como já dizia o peruano Aníbal Quijano.

Para não falar aqui do cenário de microagressões cotidianas que diversos estratos da sociedade portuguesa desferem contra brasileiros que constituem a atual onda de imigração para aquele país.

As denúncias de casos de xenofobia contra brasileiros —racismo, machismo, assédio e discriminação linguística— aumentaram 433% desde 2017 em Portugal, segundo a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial, a CICDR, órgão ligado ao governo português.

Para não falar da falta de reciprocidade dos portugueses quando se trata da divulgação da literatura brasileira por lá, com raras exceções. Em depoimento sobre a Bienal ao jornal O Globo, a editora portuguesa Bárbara Bulhosa lamentou que seus conterrâneos conheçam mal a literatura brasileira. Disse que a questão é também política, para além das diferenças linguísticas, uma vez que "as escolas portuguesas ignoram a literatura brasileira".

E as bienais também, ao que tudo indica. Nada contra a literatura portuguesa, obviamente. Mas, como diz Caetano Veloso, "gosto do Pessoa na pessoa", "minha pátria é minha língua", "e deixe os Portugais morrerem à míngua".

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