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Cinema

'Carro Rei' tem um Uno que fala, transa e ecoa a distopia do Brasil atual

Diretora Renata Pinheiro retrata a mecanização da vida em filme que tem diálogos e atuações limitadas

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Neusa Barbosa

Carro Rei

  • Onde Em cartaz nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Matheus Nachtergaele, Luciano Pedro Júnior, Jules* Elting
  • Produção Brasil, 2021
  • Direção Renata Pinheiro

​Quando se trata da construção estética de um filme, é difícil rivalizar com o rigor de Renata Pinheiro, diretora de arte premiada por trabalhos como "Zama", de Lucrecia Martel, "Tatuagem", de Hilton Lacerda, e "A Febre do Rato", de Cláudio Assis.

Em "Carro Rei", vencedor de quatro prêmios no Festival de Gramado no ano passado, ela acumula direção, direção de arte e coautoria do roteiro e dá um passo adiante não só na ambição visual como na escala imaginativa de uma fantasia distópica que dialoga estranhamente com a realidade antinatural do Brasil contemporâneo.

Na cidade de Caruaru, em Pernambuco, cenário da história, a diretora se apropria de elementos realistas, como as ruas em que os jumentos, como afirma um personagem, foram substituídos por motocicletas e também por automóveis, para compor uma fábula sombria em torno da estranha relação simbiótica entre homens e máquinas.

Mateus Nachtergaele em cena do filme "Carro Rei", de Renata Pinheiro
Mateus Nachtergaele em cena do filme 'Carro Rei', de Renata Pinheiro - Divulgação

O carro é o ganha-pão da família central, proprietária da frota Carroaru Táxi. Dentro de um desses veículos, nasceu o filho do casal, papéis de Adélio Lima e Ane Oliveira, Uninho, vivido por Alexandre Lima, um garoto que, desde pequeno, mostra a capacidade de se comunicar com os carros, ouvindo uma voz de suas engrenagens que parece estar só ao seu alcance.

Num carro, também, morre a mãe, desencadeando a separação do núcleo familiar, que inclui o irmão da morta, o mecânico Zé Macaco, vivido por Matheus Nachtergaele. Sua atuação, marcada por um gestual simiesco, leva o personagem a se situar na fronteira entre as espécies.

Isolado num ferro-velho na periferia da cidade, Zé Macaco será redescoberto pelo sobrinho agora adulto, interpretado por Luciano Pedro Júnior, vendo revalorizada sua perícia na reforma dos carros antigos que, por um decreto estadual, serão do dia para a noite proibidos de circular —numa metáfora tanto dos caprichos dos governos autoritários quanto da obsolescência forçada de um vicioso consumismo.

Uninho carrega em si a natureza dividida de confidente das máquinas e aluno de agroecologia, abrindo aqui uma vertente dissonante da mecanização que toma conta do ambiente.

Tal como uma versão debochada do computador HAL de "2001 - Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick, o Uno Mille falante que foi palco de um nascimento e uma morte se torna um equipamento cada vez mais envolvente e dominador.

O carro se torna ainda capaz de articular um movimento de tomada de poder dos automóveis sobre os homens e até de manter uma vida amorosa com Mercedes —papel de Jules* Elting, uma pessoa trans não binária. Sua participação em sequências eróticas entre humano e máquina injeta uma beleza singular, que faltou às cenas similares vistas em "Titane", de Julia Durcournau, vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes no ano passado.

Não será por acaso, aliás, que, nesta distopia mecânica, venham de mulheres, a própria Mercedes e também Amora, vivida por Clara Oliveira, colega de Uninho na faculdade, as iniciativas de enfrentamento a essa tentativa de dominação automotiva impregnada de clichês patriarcais e fatalmente fascistas. Mercedes, recorrendo à sensualidade, Amora, a uma técnica de fortalecimento das plantas, o elemento orgânico posto em ação contra uma mecanização radical da vida e das mentes.

Se há êxito tanto nessa ousadia imaginativa, que torna o roteiro —assinado por Renata Pinheiro, Sergio Oliveira e Leo Pyrata— complexo e rico de inúmeros elementos da realidade contemporânea brasileira, também se notam alguns desacertos tanto na composição dos diálogos, eventualmente um tanto artificiais, quanto na direção de atores —com desequilíbrios de tons de interpretação.

Isso não priva, porém, "Carro Rei" da condição de avis rara incômoda e intrigante a desafiar os sentidos do público para descobrir seus múltiplos significados.

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