Um dos livros incontornáveis de Carlos Heitor Cony, ao lado de "Pilatos", de 1974, é "Informação ao Crucificado". Lançado em 1961, o romance, que adota a estrutura de um diário íntimo e tem forte base autobiográfica, é um acerto de contas de quem abandonou o seminário aos 19 anos, antes da tonsura. Na última página o leitor é informado que "Deus acabou".
Não é bem assim, como provam duas obras que Cony deixou incompletas, "Paixão Segundo Mateus" e "Messa pro Papa Marcello", e que a editora Nova Fronteira acaba de enfeixar num único volume póstumo. Nelas, as crises de consciência, as inquietações religiosas e a possibilidade do diálogo com Deus são de novo matéria de memória e ficção.
O primeiro retrabalha um relato publicado nos anos 1960, "Sobre Todas as Coisas". Alguns trechos são iguais, sem mudar vírgula. O cenário é semelhante, uma igreja caindo aos pedaços nos altos da Tijuca. Os nomes e a caracterização das personagens são os mesmos —padre Lucas, velho e manco; padre Mateus, jovem e epilético; o empregado Ismael, de passado criminoso.
A trama repete a do conto, mas, para engordar a história, há a novidade de um assassinato no bairro carioca de Copacabana envolvendo um casal de amantes –ela, recém-viúva; ele, médico de "curetagens"– e a aparição fantástica de Noel Rosa bêbado num botequim de Vila Isabel.
Mais uma vez a autobiografia contamina a narrativa. A chegada ao seminário São José e a eleição do número 28 para identificar o aluno Mateus são circunstâncias da vida do próprio Cony. A diferença é que "Informação ao Crucificado" é o drama de uma desconversão, enquanto o romance inacabado revela a angústia de um sacerdote ordenado sem vocação.
"Faltou-lhe coragem de voltar atrás, quando o bispo lhe pediu o passo decisivo, os votos de castidade perpétua, a promessa de breviário todos os dias, não teve outro jeito, deu o passo, atolou-se de vez, já não com indiferença, quase com ódio, e ei-lo subdiácono, depois diácono, finalmente padre, padre para toda a eternidade".
Morto em 2018, Cony vinha prometendo escrever "Messa pro Papa Marcello" —título inspirado na obra musical de Palestrina— desde a década de 1990. Seria sua despedida, mas não saiu. Ou saíram menos de cem páginas, que mostram o autor em pleno domínio de seu ofício, o enredo amarrado com idas e voltas, o estilo cortante e sedutor, mas cuja leitura interrompida deixa um travo de tristeza pelo que poderia ter sido e não foi.
Volta à cena o narrador de "Informação ao Crucificado", João Falcão, o mais bem acabado dos pastiches literários que Cony construiu em torno de si mesmo. As preferências e manias da personagem são facilmente reconhecíveis para os que conviveram com o romancista –interpretar ao piano a canção "Alone", de Nacio Herb Brow, ou evocar a devoção a Santo Antônio na hora de encontrar objetos perdidos e abrir gavetas emperradas.
Falcão largou o seminário, virou advogado de uma grande empresa patrocinadora de eventos culturais, colecionou namoradas, mas uma pergunta o persegue –Deus acabou ou ainda existe?
Era a dúvida de Carlos Heitor Cony. Em conversa com este repórter, à época em que começou a fazer sua "Messa pro Papa Marcello", ele disse "Deus acabou para mim no sentido que acaba uma conta bancária". "Gastei demais, fui perdulário com minha cota de Deus e um dia me descobri sem fundos. O menino de 19 anos veio para o mundo, quebrou a cara por aí e, na altura de seus 60 anos, descobre que alguém fez um depósito para ele. Comecei a sacar outra vez e meus cheques eram honrados."
Foi uma quase confissão que Cony infelizmente não terminou de escrever.
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