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Cinema

'Crimes do Futuro' choca com as vísceras, mas disseca um tempo brutal

Protagonista do filme de David Cronenberg disseca seu próprio corpo e vira vanguarda da evolução em mundo que fede a morte

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Crimes do Futuro

  • Quando Estreia nesta quinta (14) nos cinemas
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen Stewart
  • Produção EUA, 2022
  • Direção David Cronenberg

"Crimes do Futuro" é um filme sobre a beleza interior. Mas a beleza interior segundo David Cronenberg pode não ser exatamente o que você está pensando —é beleza do interior mesmo. Do interior do corpo humano. E, mais exatamente, de um corpo em mutação.

Estamos no futuro, mas Cronenberg volta aqui às suas raízes —ao ser em mutação que são os homens desde sempre, e mais ainda desde que o canadense se ocupa deles.

Cartaz do filme "Crimes of the Future", de David Cronenberg
Detalhe de cartaz do filme 'Crimes of the Future', de David Cronenberg - Divulgação

No caso, Saul Tenset, papel de Viggo Mortensen, junto com Caprice, vivida por Léa Seydoux, é um artista da mutação, que já adquiriu notoriedade pela exposição de suas vísceras. Mas ele quer levar as coisas mais adiante. Não é fácil. O homem precisa se adaptar ao futuro, e Tenset pretende ser um farol das transformações que estão por vir.

É um futuro curioso. O filme trabalha certa ambiguidade —ao mesmo tempo em que proclama a fama de Tenset (ou em que ele e Caprice a proclamam, em todo caso), é sempre à beira da marginalidade que ele se encontra. Nada que lembre um filme policial, mas seus movimentos são sempre envolvidos em mistério. Parece que a arte que pratica não é propriamente oficial.

O mundo tal como o concebe Cronenberg nos prende antes de tudo a uma cenografia de paredes ora encardidas, ora descascadas, lugares sujos, edifícios envelhecidos. Nada que nos deixe esperar com grande confiança esse futuro em que a transformação do corpo se torna arte. Ou talvez tudo isso seja um encontro estranho entre o antigo e o arquimoderno, com sintomático cheiro de coisas mortas.

Arte bruta, pois trata de uma espécie de desordem evolutiva, ao mesmo tempo que Saul Tenset busca domar a rebelião que eclode em seu corpo, o que faz dele uma espécie de arauto dos novos tempos, um novo homem. Não é o único, embora seja o que o filme segue de perto. Mas ele pretende concorrer ao concurso de melhor órgão original sem função conhecida. Uma espécie de Oscar desse tempo, em que, como diz um personagem, "o corpo estava dizendo que era tempo de mudar".

É como se Cronenberg tivesse cansado das mutações discretas, interiores —no sentido clássico— de seus personagens nos últimos filmes.

E sentisse necessidade de voltar ao grupo mutante, que vive em estado de agônica euforia —ou seja, bem paradoxalmente— a dor e a delícia de ser uma vanguarda da evolução humana. São eles os protagonistas da grande arte

Cronenberg volta aqui e a ser o "bad boy" do cinema. É aquele artista livre de toda lei, disposto a tocar no mais fundo (literalmente) do ser. Como, aliás, lembra um outro personagem, "eles estão evoluindo para longe do caminho humano".

É atrevido e de certo modo brutal. Mas não destituído de humor. Não é por acaso que nesse estranho quadro de coisas de repente irrompa uma personagem tão familiar ao presente quanto o doutor Nasatir, cirurgião cosmético. Não é por acaso a cosmética, ramo promissor e lucrativo da medicina, um assombroso pesadelo para os dermatologistas mais estritos?

Pequenas inserções como essa nos levam a pensar se, à parte sua fértil imaginação, Cronenberg já não vê hoje os sinais inquietantes dessas transformações inocentes que talvez estejam nos levando "para longe do caminho humano"?

Difícil afirmar. Como sempre, Cronenberg não deixa o sentido assentar, ganhar alguma estabilidade. Ele também não afirma —questiona, nos devolve à perplexidade.

Que dizer, por exemplo, do menino que, na primeira cena do filme, se põe a comer um balde de plástico? E da mãe que mata a criança, ou melhor, "a coisa", como se refere a ela?

O cinema de David Cronenberg nunca foi, de uma maneira ou de outra, um exercício muito simples. Exige do espectador que dê a ele o mesmo que ele nos dá. É um desafio. Mas a ele não falta gênio.

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