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Cinema

David Bowie foi 'artista de cinema', com visual presente em tudo que fez

Músicas e imagens de show do artista estão em 'Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída', que reestreia nesta semana

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Paulo Santos Lima

"Nagisa Oshima é definitivamente o mais bem vestido diretor de cinema que eu já vi." É assim que David Bowie começava a falar sobre seu primeiro trabalho com o diretor japonês na entrevista coletiva de "Furyo - Em Nome da Honra" no Festival de Cannes de 1983.

A declaração comentava o acuro estético que Bowie, ali como ator protagonista no filme, percebeu nesse cineasta da nouvelle vague japonesa que apresentou ao mundo filmes fortíssimos como "O Enforcamento", de 1968, e "O Império dos Sentidos", de 1976. Bowie entendia ali, certamente, que o estilo pode ser estendido ao gesto criativo. Bowie, aliás, não ficava nada atrás em elegância.

A atriz Natja Brunkhorst, que faz o papel de Christiane F., baseado no livro 'Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída', ao lado do cantor David Bowie
A atriz Natja Brunkhorst, que faz o papel de Christiane F., baseado no livro 'Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída', ao lado do cantor David Bowie - Divulgação

Ele sempre foi um artista da imagem, com suas performances incríveis em shows, suas músicas sugerindo imersões por pistas acústicas, letras contadoras de história, que, quando ouvidas no conforto de uma vitrola em casa, traziam à mente a figura de algum de seus vários personagens —inclusive o próprio artista. Daí tudo a ver enquadrar David Bowie como um "artista de cinema", inclusive porque o visual é presença em tudo que criou como músico, ator, performer de palco e de mídia, mímico e rockstar.

E aquele ano de 1983 foi mesmo incrível para David Bowie. Além de sua atuação extraordinária no filme de Oshima, ele faria com Catherine Deneuve um belíssimo casal de vampiros no não necessariamente bom, mas fashion, "Fome de Viver", de Tony Scott. E, de quebra, lançava "Let’s Dance", seu disco de maior sucesso de vendas e brilhante incursão por uma música pop que trazia algo de experimental, entrelaçando rock dançante, funk, disco e new wave.

Inevitável lembrar a variação de cores e cortes capilares, que foram do vermelho-fogo de Ziggy Stardust e o laranja mesclado de Thin White Duke nos anos 1970 ao citado loiro quase branco da fase pop e as luzes douradas mais tradicionais de um Bowie também mais comportado, já uma personalidade da cultura, no século 21. E a finíssima alfaiataria seguindo no mesmo passinho dos cabelos. ​

Interessante notar como os cabelos loiros ultraplatinados que Bowie adotou ali estariam no disco, em "Furyo", nos shows e onde mais aparecesse. A imagem, num lance de olhar, parecia resumir toda uma produção artística daquele instante maior de Bowie, espécie de ponto alto de uma trajetória que começa em 1969, quando ele lança "Space Oddity", para então emergir a cada novo disco, atuação e manifesto.

A lembrar, ainda, que dois anos antes do evento em Cannes, na França, algumas músicas da brilhante fase entre 1976 e 1979 e imagens de um show que fez em 1975 foram usadas no clássico "Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída", espécie de filme-denúncia sobre a desgraça causada pelas drogas pesadas —que, aliás, reestreia nos cinemas nesta quinta-feira, em cópia remasterizada. A verdadeira Christiane F. amava as músicas de Bowie.

A cada passo novo que Bowie dava na música, vinha junto um personagem que poderia ser o próprio Bowie, sem que ficasse claro o que havia de real e encenação. O cume disso foi o polêmico The Thin White Duke, em 1975, encarnado por um Bowie paranoico, trincado de cocaína e, pela boca de sua criatura, simpático ao fascismo. Disso nasceu o disco "Station to Station", de 1976, e logo depois Bowie iria se limpar de corpo e alma na trilogia de Berlim, com "Low", "Heroes" e "Lodger", que figuram entre o que fez de melhor em seus 69 anos de vida.

Interessante ir a "O Homem que Caiu na Terra", de 1976, filme dirigido por Nicolas Roeg. Bowie está ótimo como Thomas Jerome Newton, alienígena trágico que vem aqui atrás de água para salvar seu planeta mas acaba rendido ao álcool, ao sexo e à cultura de massa. Um tanto desse personagem estaria no Ziggy Stardust de 1972 e no Thin White Duke. E também nas capas de "Station to Station" e "Low".

Não só nos palcos, Bowie manteria os pés nos sets de filmagem. Em 1986, ele se instalaria no imaginário infantil no clássico "Labirinto, A Magia do Tempo". Faria depois um Pôncio Pilatos que era a cara de David Bowie em "A Última Tentação de Cristo", de 1988, o que deixava clara a intenção de Martin Scorsese em flertar com algo mais pop, como a trilha de Peter Gabriel.

Diante da estranha maré musical dos anos 1990, lançaria em 1995 o brilhante (e incompreendido) "Outside", em que traz um novo personagem, Nathan Adler, numa trama noir feita por texto e melodias complexas e dissonantes. Não é à toa que a faixa "I’m Deranged" estaria, em 1997, em "A Estrada Perdida". Ao final do filme, a música é retomada com a voz de Bowie sozinha, recitando "funny how secrets travel", ou curioso como os segredos viajam, o que definia bem o espírito dessa obra-prima de David Lynch.

Bowie se tornaria, a partir de 1997, quando lança "Earthling", uma espécie de entidade. O disco era genial ao deixar patente que ele era um dos protagonistas da cena da música eletrônica ali —em 1969, com o estilofone, que trazia sons cosmonáuticos a "Space Oddity", Bowie já estava lidando com batidas não propriamente acústicas.

Bowie apareceria em filmes de Ben Stiller e Christopher Nolan, mas os álbuns "Heathen", de 2002, e, mais simpático aos fãs de rock, "Reality", de 2003, são mais memoráveis. Durante a turnê deste último, teve problemas cardíacos sérios. Foi se tornando mais recluso até quase desaparecer a partir de 2006. Bowie aí se tornou uma lenda, ao estilo de Marlon Brando e Dalton Trevisan. Até reaparecer, em 2013, com "The Next Day", com uma capa que faz referência direta à de "Heroes". Era Bowie dizendo que gostaria de voltar aos "golden years" daqueles anos 1970.

O corpo sempre padece antes do gênio. Mas insiste. Em "Blackstar", lançado em 2015, Bowie estava com câncer em fase avançada. Fez um canto do cisne em forma de obra de arte, com um jazz mais acentuado nas faixas, as letras entoando referências a algo mais etéreo sobre uma vida que transcende o limitado mundo físico e um timbre de voz que parecia o de um sábio falando ao infinito cósmico.

Os clipes das faixas "Blackstar" e "Lazarus" são depurações do que Bowie fazia nos clipes desde os anos 1970. Cá estão a teatralidade corporal brechtiana, a singular voz sideral, as letras falando poeticamente sobre o tempo presente que nem sempre é percebido e, claro, a elegante e inesquecível imagem de David Bowie em costume, cabelo e traços anatômicos. Uma típica despedida de astro do cinema.

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