Mostra no CCBB celebra os 50 anos da arte armorial e obras de Ariano Suassuna

Exposição em São Paulo vai do cinema à dança, seguindo o movimento idealizado pelo autor de 'Auto da Compadecida'

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'Anjo e Dragão', obra que está na mostra 'Movimento Armorial 50 Anos', no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo Diego Rocha/Divulgação

São Paulo

No sertão, o sol tudo esclarece. "Sem lei nem Rei, me vi arremessado,/ bem menino, a um Planalto pedregoso./ Cambaleando, cego, ao sol do Acaso,/ Vi o mundo rugir, Tigre maldoso."

Num quarteto, o escritor e dramaturgo paraibano Ariano Suassuna descreveu o próprio nascimento. Depois, desenhou letra por letra, outro quarteto, emendando mais três tercetos até formar a sua "Infância", voltando às imagens que o acompanharam ao longo da vida, paisagem após paisagem.

Entre as estrofes, pululam cabras aladas, mostrando línguas e dentes. Desenhos, nas bordas do papel cartão, trazem cactos e espingardas, dividindo espaço com sóis vermelhos. A iluminogravura –neologismo que ele criou para definir a fusão de iluminura e gravura– é um dos poemas que compõem "Dez Sonetos com Mote Alheio", de 1980.

Xilogravura de Gilvan Samico na mostra 'Armorial', no Centro Cultural Banco do Brasil
Xilogravura de Gilvan Samico na mostra 'Movimento Armorial 50 Anos', no Centro Cultural Banco do Brasil - Diego Rocha/Divulgação

Usando nanquim, guache e óleo, Suassuna empregou, cinco anos depois, técnica similar em "Sonetos de Albano Cervonegro". Com os dois álbuns e outras três pinturas, revelou sua faceta de artista plástico, tão pouco conhecida do público. Nos anos 1970, o escritor havia liderado o chamado movimento armorial, que ganha uma exposição comemorativa em seus 50 anos, no Centro Cultural Banco do Brasil, o CCBB, depois de atrair 140 mil visitantes em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.

O termo "armorial" se refere ao conjunto de insígnias e brasões de um povo. Sob o aspecto temático, Suassuna enfatizava que a arte deveria ter uma ligação heráldica com as raízes nordestinas. Por isso, é comum achar brasões que identificam a genealogia de famílias da região em obras do período.

Em paralelo, as telas, sempre figurativas, louvam o folclore local, absorvendo lendas de sereias e quadrúpedes que cospem fogo. Desse modo, se elaborava uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular. Idealizada por Regina Godoy, "Movimento Armorial 50 Anos" selecionou 140 obras em diferentes suportes dos principais artistas da época, como Lourdes Magalhães e Aluísio Braga.

Desde a origem, o movimento foi concebido para integrar diferentes linguagens –literatura, música, teatro e dança. Organizadora da exposição, Denise Mattar afirma que os cordéis serviram de esteio para que o armorial se manifestasse tal como preconizado por Suassuna. "No cordel, você já encontra todas as artes juntas", ela diz. "A literatura está no romanceiro do Nordeste, a xilogravura serve como ilustração e, pela música, as histórias podem ser transmitidas."

Ela ressalta, porém, que os temas armoriais existiam bem antes do movimento, porque sempre integraram o imaginário nordestino. A própria literatura de cordel chegou, no século 17, com os portugueses. Sobre os brasões e as criaturas, Mattar pensa ser uma herança ibérica dos tempos da Idade Média e das culturas negra e indígena.

O movimento surge no período em que Suassuna era diretor do departamento de Extensão da Universidade Federal de Pernambuco, a UFPE. Com o apoio dos políticos do Recife, lançou o movimento em outubro de 1970, com uma exposição e um concerto da Orquestra Armorial de Câmara, na igreja São Pedro dos Clérigos.

Na época, o escritor se preocupava com a descaracterização da cultura brasileira, o que deixa algumas dúvidas no ar. Uma delas é até que ponto a inquietação do autor não era tão somente expressão de um pensamento ufanista. "Essa reação dele surge contra a arte abstrata, que simbolizava também uma expansão política dos Estados Unidos", diz Mattar. "Ele foi contra a proposta, por exemplo, do grupo Ruptura ou dos artistas da Bienal de São Paulo."

Suas convicções estéticas estiveram presentes durante toda a carreira literária, tanto que a exposição se inicia por um núcleo sobre a vida e obra do autor. Nele, encontramos a única cronologia correta sobre a vida de Suassuna, acompanhada de alguns manuscritos e capas das mais recentes edições de seus livros. Com letra caprichada, o autor de "Auto da Compadecida", de 1955, e "O Santo e a Porca", de 1957, escrevia tudo à mão, desenhando temas armoriais nas bordas das páginas.

Na mesma sala, observamos as letras do alfabeto sertanejo, concebido por Suassuna em 1974, com a publicação do livro-álbum "Ferros do Cariri: Uma Heráldica Sertaneja". O escritor reafirmava ali a natureza heráldica do armorial, criando símbolos a partir de ferros de marcar bois, que designam a propriedade familiar de uma criação de gado.

Em seguida, lembramos "A Compadecida", de George Jonas, um dos primeiros filmes coloridos do cinema brasileiro, lançado em 1969. São expostos os figurinos do longa, criado por Francisco Brennand, em desenhos de nanquim com lápis aquarelado.

Durante as filmagens em Brejo Madre de Deus, no interior de Pernambuco, Antônio Fagundes e Ary Toledo não aguentaram o calor, quando não estavam nos cenários criados por Lina Bo Bardi. Regina Duarte, diz a lenda, foi exceção. Parada como uma estátua, parecia ter se convencido de ser a própria Virgem Maria.

Enquanto isso, Brennand fugia de rótulos. Gaiato, dizia não ser armorial, mas sexual. Também afirmou ter aderido ao estilo pela amizade que tinha com Suassuna, mas não mencionou a onipresença dos elementos armoriais em sua obra. A rigor, existem duas fases do movimento. A divisão se deu por ordem cronológica, não representando expressiva diferença estética entre os períodos.

Para exemplificar a fase experimental, a mostra exibe algumas obras selecionadas pelo próprio Suassuna, que integram até hoje o acervo da UFPE. Em uma delas, Miguel dos Santos recria a luta de são Jorge em seu cavalo contra o dragão, com traços que sugerem movimento dos personagens ali representados.

Ao mesmo tempo, Fernando Lopes da Paz investiu na escultura, tematizando animais fantásticos talhados em madeira, como em "O Gavião Sagrado" e "O Guerreiro", duas obras sem data conhecida. Usando a simbologia de forma particular, Gilvan Samico ganhou uma sala especial na exposição.

Com o tempo, Samico se tornou o artista armorial por excelência. Sua obra privilegia a xilogravura, mas a mostra do CCBB traz também suas pinturas, como "O Fazedor da Noite", de 1976, que se distingue pela tonalidade das ondas em azul. Seu fino corte tem precisão incomum, capaz de contar histórias, como em "A Bela e a Fera", de 1996, e "No Reino da Ave dos Três Punhais", de 1975.

Em 2003, Ferreira Gullar, na condição de crítico de arte, dedicou um capítulo para Samico em seu livro "Relâmpagos". Novamente foi o poeta quem tudo esclareceu. "É uma linguagem clara, límpida, mas plena de ecos. Ela é assim jovem e arcaica. A linha, que Samico traça, para definir as figuras é também expressiva em si mesma como linha, tem intensidade e melodia. É uma gravura sem truques, sem retórica, sem falsas emoções. É tudo gráfico –o que está ali está ali, à nossa vista."

Na mostra, a segunda fase do movimento é celebrada com fotos do Balé Armorial do Nordeste, criado em 1976. Mas Suassuna só atingiria seus objetivos na dança com o Grupo Grial, que surgiu 20 anos depois, sob liderança de Maria Paula Costa Rêgo. Já a música, continua a transmitir a palavra do escritor.

É o caso do grupo paranaense Rosa Armorial, que se apresenta no CCBB, em 18 de agosto. Com violas e pífanos, o conjunto já lançou três discos, combinando a boa simplicidade da cultura popular a alguns tons modernos –para alguns, heréticos.

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