O Brasil está decaindo até a barbárie, diz Tom Zé, que lança 'Língua Brasileira'

Músico tropicalista constrói seu novo álbum sem abandonar a alma lúdica e o prazer de brincar com as palavras de sua obra

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O músico tropicalista Tom Zé, que lança o disco 'Língua Brasileira' Divulgação

Rio de Janeiro

O idioma que brota do álbum "Língua Brasileira", que Tom Zé apresenta neste sábado e domingo no Sesc Vila Mariana, tem raízes históricas e linguísticas. Mas a perspectiva da investigação do baiano de Irará é fundamentalmente mítica.

Passam pelo disco a ilha mágica de "Hy-Brasil" sonhada pelos celtas, a "terra sem mal" imaginada como paraíso tupi, assim como a criação do mundo contada pelos olhares guarani e iorubá. E, mesmo quando baseadas em notícias de jornal ou pesquisas acadêmicas, as narrativas ganham ares de mitologia —como na canção que fala dos indígenas que, em protesto, desligaram as antenas do pico do Jaraguá há cinco anos, afetando as comunicações em São Paulo.

O compositor afirma que a escolha do tom de seu estudo —à maneira como o verbo foi usado em "Estudando o Samba", álbum clássico seu lançado em 1976— não foi casual.

"O mito é a primeira literatura das civilizações, no início de sua atividade intelectual", analisa o tropicalista. "O mito não só desenvolve a mentalidade de um povo, mas é o que o mantém unido ao longo dos séculos. Joseph Campbell diz que quando uma tribo passa a desconhecer seus mitos fundadores, sua origem, ela se desmembra. E Políbio, historiador da Grécia Antiga, conta de um povo que esqueceu suas lendas, suas adorações, enfim, sua cultura, e foi decaindo até a barbárie. O Brasil está ameaçado disso."

Tom Zé lança o disco 'Língua Brasileira' - Divulgação

O desejo de ver a língua —e o próprio Brasil— pela lente do mito é portanto, em alguma medida, uma resposta de Tom Zé ao estado de desvalorização da cultura que vem se instalando no país nos últimos anos. Uma resposta que se afina a outras de colegas de geração como Caetano Veloso —"não vou deixar que se desminta/ a nossa gana, a nossa fama de bacana/ o nosso drama, a nossa pinta", diz canção de seu mais recente disco— e Chico Buarque, que em seu lançamento de semanas atrás propõe "puxar um samba, que tal?/ pra espantar o tempo feio/ pra remediar o estrago".

"Essa música do Chico é de chorar, quando a gente ouve a primeira vez a gente cai para trás. Porque tudo o que a gente fala com violência ele encontra um jeito de falar com amor", define Tom Zé. "Chico, Caetano, Gil, São mestres que eu ouço bebendo a água do paraíso."

"Língua Brasileira" nasceu de uma provocação do diretor Felipe Hirsch, que convidou Tom Zé para desenvolver com ele um espetáculo teatral. Em meio às pesquisas para se definir o caminho da criação da dupla, Hirsch se deparou com a canção "Língua Brasileira", gravada pelo baiano em seu disco "Imprensa Cantada", de 2003. Foi a partir dela que se desenvolveu o espetáculo que estreou em janeiro deste ano e que agora chega ao formato de álbum.

Como base teórica e inspiração, o diretor e o compositor tiveram o auxílio de acadêmicos como Eduardo Viveiros de Castro, Caetano Galindo, Eduardo Navarro e Yeda Pessoa de Castro —especialistas em culturas indígenas e africanas, assim como em línguas como tupi-guarani, quimbundo e outras que engrossaram o caldo que formou o português falado no Brasil.

"Língua Brasileira", o disco, expõe suas intenções desde o título, ao evidenciar que nosso idioma tem distinções marcadas com relação ao que veio de Portugal. Nas 11 canções do álbum, o baiano mapeia uma língua que nasce do latim vulgar, com "Pompeia - Piche no Muro Nu", e chega às conquistas estilísticas e existenciais de Clarice Lispector, com a faixa "Clarice", apoiada nas contribuições negras —caso de "A Língua Prova Que"— e indígenas —"Gênesis Guarani".

Língua essa que também marca sua identidade hoje no contraste com o inglês —tematizado em "Metro Guide"— e na poesia rascante do portunhol selvagem —"San Pablo, San Pavlov, San Paulandia", única música que Tom Zé assina em parceria, no caso com Douglas Diegues. Ou seja, uma língua impura e, mais do que isso, rica pela impureza.

"A presença marcada das vogais da língua que falamos no Brasil vem do quimbundo, isso que deu ao nosso português esse cantabile", nota Tom Zé. "E tem a influência árabe. Porque a Europa estava dominada pelos bárbaros cristãos, que acabaram com tudo de cultura, instaurando um analfabetismo em larga escala. Uma propaganda do analfabetismo, parecia o Brasil. No meio disso, a península Ibérica foi invadida pelos árabes, o povo mais culto naquele momento."

Músico baiano Tom Zé, que lança o disco 'Língua Brasileira' - Divulgação

Nesse contexto, Tom Zé se mostra especialmente perplexo com a estupidez do racismo. "Como é que a pessoa pode ser racista se ela fala uma língua que é bonita e admirada no mundo todo pela presença africana que há nela, a presença dessas civilizações segregadas, o negro, o índio? O camarada em seu apartamento de luxo em Copacabana ou no bairro nobre de São Paulo que pensa assim não sabe o que fala. Porque a riqueza da língua brasileira vem exatamente desse corpo que é o que morre mais, é o mais pobre, é quem mais é atingido pela inflação, é quem mais é preso, é o que sofre o diabo."

A "língua brasileira" que Tom Zé documenta é fruto de resistência, portanto —uma insubmissão que se manifesta mesmo linguisticamente, ao burlar as regras e sonoridades herdadas do colonizador. "Ela nasce do sonho das classes recusadas", sintetiza Tom Zé.

Esse caráter de revolta aparece em canções como "Clarins da Coragem", que saúda os heróis que quiseram criar "um Brasil que até hoje não há" e que usa em seu refrão uma expressão em tupi que o compositor aprendeu com seu irmão, Augusto J. S. Martins. "Ibiarabaré abacatu", no caso, significa "reunião de gente boa", afirma o baiano.

Outros exemplos de insubordinação estão em "Índio Desliga Jaraguá", que relata o já lembrado protesto indígena de 2017, e "Pompeia - Piche no Muro Nu". Esta última trata da descoberta histórica de uma pichação milenar em latim vulgar encontrada num muro de Pompeia. "Está escrito lá ‘viva quem ama, morra quem não ama, morra duas vezes quem proíbe o amor’", conta o baiano, que cita a inscrição no original na letra da canção.

Mesmo uma canção delicada como "Clarice", construída sobre aliterações, carrega essa semente. Tom Zé a compôs pouco depois de ter lido "Perto do Coração Selvagem", de Clarice Lispector, e tendo em mente a biografia da escritora —de família judia russa, ela veio para o Brasil ainda criança, fugindo da perseguição na Europa. "Uma ameaça dessas é uma marca que se estende ao longo da vida e se prolonga no braço que escreve", acredita o tropicalista.

A presença da escritora no disco é a manifestação mais evidente do que Tom Zé aponta como a natureza feminina do idioma falado no Brasil. "O feminino está na base da língua e da cultura brasileira", defende Tom Zé. "A bossa nova é um exemplo. É banal, mas ao mesmo tempo muito esclarecedor que, quando João Gilberto surgiu e alguns de nós garotos começamos a cantar daquela maneira dele, os outros meninos gritavam ‘bicha, bicha’. Queriam dizer ‘feminino, mulher’, o que era entendido como ofensivo."

Em "Estudando a Bossa", álbum de 2008, Tom Zé lançou a tese de que o movimento —por seu caráter feminino— influenciou a engenharia brasileira. "As plataformas flutuantes da ponte Rio-Niterói, femininas, acolhendo o mar, permitiram sustentar aquela estrutura toda, que até então ninguém sabia como fazer num mar tão profundo. Veja que força o feminino tem", afirma o músico, amarrando engenharia, música e língua.

Com produção musical de Daniel Ganjaman e Daniel Maia, "Língua Brasileira" traz em seus arranjos e mesmo em versos alguns gêneros nascidos na —ou adotados pela— tradição brasileira, como samba-canção, rap, samba-enredo, baião, rock, marcha.

Tom Zé vê na música produzida aqui a manifestação mais nítida da grandeza da cultura brasileira. Lembra a bossa nova, que costuma descrever como a responsável por fazer o Brasil passar de exportador de matéria-prima —"grau mais baixo de desenvolvimento de uma civilização"— a exportador de arte —"grau mais elevado".

Mas louva também a produção contemporânea, representada no disco na participação de Maria Beraldo na faixa-título. "Hoje você tem Rincon Sapiência, Tatá Aeroplano, Terno, Trupe Chá de Boldo, Karina Buhr, Metá Metá. Eu tenho orgulho do que eu ouço. Se não fosse crime, eu roubava e dizia que era minha a música deles. Não estou falando do arrastão [como o cantor chama sua prática de usar como referência algo de outro artista], porque isso eu já faço. Estou falando de tirar o nome de quem fez e botar o meu", brinca.

Músico baiano Tom Zé, que lança o disco 'Língua Brasileira' - Divulgação

Apoiado em estudos acadêmicos e nas reflexões por vezes densas de Tom Zé, "Língua Brasileira" não abandona a alma lúdica, o prazer de brincar com palavras. Desde a criação de neologismos usando fonemas que evocam línguas indígenas ou africanas até o uso de expressões como "cu do juda".

Há também a construção de uma canção simplesmente a partir da contraposição do guia dos telefones do metrô de Nova York e o de Irará —para concluir que "Corpo de Bombeiros/ sinto muito, lá (em Irará) não tem/ vá apagar seu fogo em Nova York".

Por fim, há a máxima subversão-molecagem, uma (im)possível síntese da "língua brasileira" defendida pelo baiano. Nada menos do que rasgar ao meio a palavra "latrinas" convertendo o som de "tr" num sonoro peido, no instante em que o migrante pergunta para a porção burguesa da metrópole de "San Pablo, San Pavlov, San Paulandia" o que "seria de ti sem nosostros los mais paraguaios, los kabroboles, los kabras de la peste". "E quem, quem limparia vostras latrinas?" Invenção e revolta, humor e experimentalismo —a língua deste país, a música de Tom Zé.

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