Obra de Amadeo Luciano Lorenzato é examinada em livro à luz da modernidade

Rodrigo Moura investiga o lugar do pintor mineiro na história, entre a Semana de Arte de 1922 e os anos 1940

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São Paulo
O pintor mineiro Amadeo Luciano Lorenzato permaneceu à margem do modernismo e da modernidade. Quando os preceitos estéticos da Semana de Arte Moderna de 1922 se estabeleceram, ele nem sequer estava no Brasil. Fugindo da gripe espanhola, sua família havia se mudado, em 1920, para a Itália, num retorno às próprias origens. De lá, Lorenzato só retornaria homem feito, em 1948.
Tampouco o artista teve protagonismo na Belo Horizonte que, na década de 1940, sediou o açodado plano de modernização do então prefeito Juscelino Kubitschek. O projeto do Complexo da Pampulha, idealizado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, fora uma das iniciativas de JK, que simbolizaram o ansiado progresso urbanístico da capital mineira.
paisagem-pintura de Lorenzato com sua técnica particular
Obra de Lorenzato - Ding Musa

Segundo Rodrigo Moura, autor do livro "Lorenzato", que chega pela editora Ubu, o artista deve ser visto como um modernista tardio. O evento paulistano pouco acrescentou ao seu repertório, tanto mais se considerarmos a ampla aceitação comercial, que já gozavam as formas geométricas ou semigeométricas, depois da Semana de Arte Moderna de 1922.

A arquitetura moderna, porém, se manifestou em Lorenzato numa obsessão formal. Em Minas Gerais, geometria e simplicidade ganhavam território, corpo –e contornos– no adensamento urbano da primeira cidade planejada do país. As quase 5.000 obras do pintor revelam um estilo caudatário da arquitetura moderna, fazendo ao mesmo tempo um contraponto negativo ao movimento.
Lorenzato cultivou a repetição em centenas de telas que representam as favelas de Belo Horizonte. Os pequenos "caixotes", como se tornaram conhecidos, indicam as construções simples que se multiplicaram nos subúrbios da capital mineira, a partir do crescimento desordenado da cidade.
A simplicidade ali evocada não sugere só uma filiação ao despojamento decorativo. Ao contrário, desloca o olhar para as periferias da cidade, território habitado pelo artista durante toda a vida. "Lorenzato" coroa uma redescoberta do pintor, que se popularizou nos últimos anos. Segundo Moura, a discrição com que a obra foi recebida pelo público refletiu algumas escolhas do próprio artista.
"Estar em Belo Horizonte não o ajudou a ter uma carreira, porque ele ficou restrito a um círculo provinciano", ele afirma. "Lorenzato não participava dos salões locais e também não se inscrevia em concursos ou premiações, preferia estar meio fora do mercado."
Nascido em 1900 na colônia agrícola de Barreiro, no subúrbio da capital mineira, o artista percorreu a Europa com um amigo, ganhando, na Itália, alguma formação acadêmica. Quando voltou ao Brasil, trabalhou no hotel Quitandinha, em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro.

Depois, nos anos 1950, migrou para a construção civil, se tornando pintor de paredes. Lorenzato, morto em 1995, só foi exercer em tempo integral suas funções artísticas, quando já havia ultrapassado os 60 anos de idade. Nesse momento, Alberto da Veiga Guignard, símbolo da arte mineira, havia acabado de morrer, dando a impressão de que Lorenzato só pôde desenvolver a carreira depois da morte de seu conterrâneo, com quem teve pouco contato.

"Se Guignard não é uma vaca sagrada, ele é uma influência ensurdecedora na arte mineira. Depois de sua morte, foi preciso um movimento para expiar essa presença entre os artistas, porque ele criou muita imitação", ressalta Moura.

Da construção civil, ele inventou a técnica que seria sua assinatura. Com um pente, Lorenzato raspava a tinta sobre a superfície repetidas vezes, até gerar uma textura áspera, fundindo cores e dando uma sensação de movimento. O livro "Lorenzato" reúne 230 obras em diferentes núcleos temáticos, com ensaios críticos assinados por Moura e fotografias de Mauro Restiffe.
Em "Matéria de Construção", apreciamos a representação de suas edificações populares. O interesse do artista pelo tema era tamanho que algumas telas reproduzem conjuntos habitacionais de Belo Horizonte. Nesse núcleo, observamos a influência do cubismo analítico do pintor francês Georges Braque. Por vezes, Lorenzato entra numa zona cinzenta entre a figuração e a arte abstrata, sugerindo formas geométricas, presentes em platibandas e lajes planas.
Já "Leste-Oeste" traz sua iconografia dedicada à natureza de Belo Horizonte. Nesses trabalhos, fauna e flora não têm significado lírico ou poético. Ele pinta o que se enxerga nas paisagens urbanas, acentuando a demarcação de planos. "O renascimento funciona como uma matriz espiritual, tanto que ele cita diversas vezes o pintor italiano Masaccio e fala bem do Da Vinci. Ele só não gostava do Rafael, falava que suas obras eram ‘lambidas’", lembra Moura.
Por fim, adentramos o terreno afetivo de Lorenzato em "Papel de Embrulho", com naturezas-mortas e objetos que rememoram sua viagem pela Europa, e "Álbum de Família", seção em que retrata seus familiares. Onipresente nas paisagens está o sol vermelho, dramático, acima da serra do Curral. "Essa cor não é influência de ninguém, não. Isso só se encontra em Belo Horizonte."
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