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'Pança de Burro', de Andrea Abreu, tem força e qualidade, mas empaca

Narrativa mostra duas meninas que vivem entre brincar, descobrir os mistérios do corpo e se desafiar para sonhar

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Luís Augusto Fischer

Pança de Burro

  • Preço R$ 69,90 (192 págs.); R$ 31,92 (ebook)
  • Autoria Andrea Abreu
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Livia Deorsola

Pouco adianta ler na contracapa o significado da expressão no título do romance –fenômeno meteorológico do norte das Canárias, com nuvens pesadas e baixas formando uma camada plúmbea. A história aqui narrada se passa nas Canárias, sim, e de fato o ambiente físico tem algo de opressivo, mais pela presença de um vulcão adormecido do que pela dita pança. Posta no título, porém, essa informação poderia sugerir que é a natureza hostil a força dominante no enredo. Não é.

O centro da narrativa está na relação entre duas meninas, duas púberes, que vivem entre brincar de "bárbis", assim nomeadas, descobrir os mistérios do corpo e se desafiar para sonhar com algo de melhor para a vida medíocre que levam.

Capa do livro 'Pança de Burro' - Divulgação

São nativas da ilha, filhas e netas de trabalhadores que se dividem entre pequena produção rural e prestação de serviços triviais para os turistas europeus. Ir à praia já seria uma conquista, para elas que viviam na montanha.

Ao lado disso, ganha força a dicção da voz narrativa, em primeira pessoa, por uma das duas personagens centrais. Nessa dimensão, reproduzida com boa força na tradução brasileira, o que se ouve é uma voz, uma mentalidade, uma visão ingênua das coisas, marcada por essa cisão social entre os de fora e os nativos, de um lado, e por uma silenciosa mas opressiva presença da cultura de massas.

Esta se expressa nas telenovelas que as famílias acompanham e que representam toda uma educação sentimental para aquela gente, assim como nas referências a cantores pop e a marcas multinacionais de produtos desejados –nisso, nada de muito diverso do que ocorre entre pobres de toda parte.

Acresce que a narradora está no polo oprimido da relação entre as duas protagonistas. A outra, Isora, é mais desenvolta, mais atilada, mais vítima das fantasias de consumo, que a levam a querer economizar para uma hipotética cirurgia bariátrica, solução mágica para ser esbelta e desejável, como as artistas e as turistas. Entre as duas o leitor vai encontrar o principal do romance, com lances de convergência e cumplicidade, mas também de disputa e conflito aberto.

A escritora Andrea Abreu - Divulgação

Alguns elementos que poderiam render bastante no desenho dos conflitos e das subjetividades restam como que jogados à toa. Há toda uma dimensão erótica na relação entre Isora e "shit" —em minúscula, o nome com que Isora trata sua amiga, a narradora—, que ecoa na figura de um vizinho, um menino chamado por elas de Juanita Banana e que é oprimido fortemente pela família, assim como numa casa "dos homossekssuais" ou no adjetivo "sekssi".

Fica uma sensação de desperdício da força potencial de toda essa temática, até mesmo porque essa grafia peculiar não está disseminada, por assim dizer, não é orgânica no conjunto do livro.

Outro exemplo é o comentário fortuito sobre a parecença de Isora com os "guanches", já ao final do romance. Numa das notas da tradutora aparece a notícia de que "guanches" eram os nativos das ilhas, gente que já lá vivia havia tempos quando elas foram abordadas por europeus. Uma gente "atrasada", que vivia "na idade da pedra" em pleno século 16. Outra porta que se abre mas logo se fecha para conflitos que talvez pudessem adensar o relato.

O romance tem certa força e qualidade, num trabalho interessante de representação da percepção de uma menina púbere e no registro da vida mesquinha, intranscendente, passada em localidade remota e exótica para quase todo mundo.

Mas o andamento travado e reiterativo do enredo atua mais como acúmulo de cenas do que como uma progressão narrativa, com os capítulos se sucedendo sem acrescentar quase nada um ao outro, salvo no momento do desenlace, que encerra o livro mais por exaustão do que por atingimento de um ápice.

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