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Por que doramas e k-dramas, as novelas conservadoras da Ásia, viraram febre no Brasil

País é o segundo maior consumidor do mundo destas produções, com paixões platônicas, sem sexo ou pegação

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Elenco sul-coreano de 'Além do Guarda-Roupa', primeiro k-drama produzido no Brasil, a ser lançado pela HBO Max

Elenco sul-coreano de 'Além do Guarda-Roupa', primeiro k-drama produzido no Brasil, a ser lançado pela HBO Max Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

Como boa brasileira, a radialista Leane Melo, de 47 anos, sempre gostou de novelas. Ela, porém, não tinha muita paciência para boa parte dos folhetins, que considerava longos demais. Foi então que, há seis anos, conheceu os doramas —uma espécie de novela, só que produzida na Ásia como um seriado de streaming, isto é, com poucos episódios, sob medida para serem vistos de uma só vez.

Foi amor instantâneo. Embora não passasse de um "romancezinho bobinho", a história fisgou seu interesse de tal modo que Melo mal teve tempo de comer e dormir depois que apertou o play. A paixão pela Coreia do Sul foi tamanha que, além de procurar aprender coreano, ela se mudou para o Bom Retiro, bairro da região central de São Paulo com forte presença de imigrantes sul-coreanos.

Elenco sul-coreano de 'Além do Guarda-Roupa', primeiro k-drama produzido no Brasil, a ser lançado pela HBO Max
Elenco sul-coreano de 'Além do Guarda-Roupa', primeiro k-drama produzido no Brasil, a ser lançado pela HBO Max - Karime Xavier/Folhapress

E Melo não está sozinha. Fora da Coreia do Sul, o Brasil é o segundo país que mais assiste a doramas, atrás só dos Estados Unidos, de acordo com o Rakuten Viki, um streaming voltado para produções asiáticas. São 4,5 milhões de brasileiros que usam a versão gratuita ou pagam, em dólar, entre R$ 25 e R$ 50 para ter acesso à plataforma, lançada no país há seis anos. Para termos de comparação, a Netflix tinha no início do ano passado 19 milhões de assinantes no país.

O número de usuários do Viki no Brasil cresceu 65% nos dois últimos anos, principalmente entre os millennials e a geração Z, ou seja, entre quem tem entre 12 e 41 anos, o que levou a empresa a abrir um escritório de marketing no país.

Tamanho é o interesse do público que ao menos três produtoras já estão criando doramas no Brasil —ou k-dramas, como são chamados os que são feitos especificamente na Coreia do Sul. As produções vêm na esteira do sucesso não só do k-pop, mas de "Round 6", o seriado mais visto da história da Netflix, que investiu R$ 2,5 bilhões em produções sul-coreanas, e de "Parasita", que há dois anos venceu o Oscar de melhor filme.

A Coração da Selva, produtora de São Paulo, acaba de filmar "Além do Guarda-Roupa" para a HBO Max. Com dez episódios de meia hora, o seriado, ainda sem previsão de estreia, acompanha uma adolescente brasileira com ascendência sul-coreana que vive no Bom Retiro.

Sua vida vira de cabeça para baixo quando ela descobre dentro de casa, mais ou menos como em "As Crônicas de Nárnia", um armário mágico que liga o Brasil à Coreia do Sul —ou, mais especificamente, ao dormitório do ACT, o grupo de k-pop mais famoso do mundo, como o BTS é na vida real.

Os ídolos do ACT, que têm seu empresário vivido pelo ex-BBB Pyong Lee, são interpretados por cantores com passagens por grupos reais de k-pop —Kim Woo Jin, Jin Kwon, Lee Min Wook e Jae Chan. Além do cachê, o quarteto vê no seriado uma oportunidade de impulsionar suas carreiras na própria Coreia do Sul, já que o Brasil é um dos países onde o k-pop mais faz sucesso. Antes de se tornar um fenômeno mundial, por exemplo, o BTS já fazia sucesso por aqui.

Georgia Costa, a principal executiva por trás da produção, diz que teve a ideia de investir nas novelas coreanas quando descobriu que havia um nicho de mercado com grande potencial inexplorado. Ela contratou uma dramaturga para maratonar os dez doramas de maior sucesso e mapear quais elementos se repetiam nas narrativas, para aprender o que deveria fazer e o que deveria evitar.

Sua principal descoberta foi que os k-dramas são muito mais inocentes —ou conservadores, em outras palavras— do que as novelas brasileiras. Um levantamento que a reportagem obteve do DramaFever, streaming de doramas da Warner que teve suas operações encerradas em 2018, confirma a hipótese.

O documento, apresentado a produtores brasileiros, aponta que as narrativas giram em torno de um "amor casto", com "paixões platônicas", "cenas de sexo somente insinuadas", lideradas pela figura masculina, "sempre com abdômenes definidos e ternos impecáveis", sem "nenhum personagem gay, gordo ou feio".

Andréa Midori Simão, que coordenou os roteiros de "Além do Guarda-Roupa", diz que reproduziu a maior parte dos clichês dos k-dramas, sobretudo os que dizem respeito ao casal protagonista. Eles se conhecem num episódio, trocam olhares noutro e vão se beijar, por exemplo, só perto do fim do seriado.

"Cada etapa de um romance é muito intensa", diz. "É comum, na ficção brasileira, pôr o casal para se beijar ou para transar logo no primeiro encontro, mas nos doramas isso destrói o arco narrativo do romance."

Uma das poucas subversões é que, no seriado da HBO Max, há um casal gay, algo que a própria roteirista nunca tinha visto nos dramas asiáticos. "Era uma grande vontade nossa, mas fizemos com todo o cuidado, para que ficasse fofo e não saísse do padrão."

Seja em romances, seja em comédias, seja em suspenses, é comum, entre os doramas produzidos na Ásia, puxões de braços, beijos forçados e protagonistas femininas que têm sua privacidade invadida pelos homens.

São questões que, se por um lado podem parecer conservadoras demais para parte do público, por outro são um espelho da cultura coreana, na avaliação do escritor Nick Farewell, que acaba de vender um k-drama para a Gullane, outra produtora paulistana.

Também ambientada no Bom Retiro, "My Way", escrito há seis anos e ainda sem previsão de estreia, acompanha um adolescente brasileiro com pais coreanos rígidos que é obrigado a cursar engenharia, em vez de artes cênicas, seu sonho, e que sofre críticas da família por se apaixonar por uma brasileira.

A narrativa, repleta de referências ao k-pop, é atravessada por discussões como segregação racial e conflitos geracionais. São questões que também devem ser vistas em "Quase Pop", uma série que a Conspiração, produtora do Rio de Janeiro, encomendou da escritora Ray Tavares e da produtora Bia Crespo, esta ambientada numa colônia coreana no Ceará.

A ideia ganhou força quando o núcleo de tendência e pesquisas da Conspiração identificou, a partir de dados da Parrot Analytics, a mesma tendência apontada pela Rakuten Viki —a de que o Brasil é o segundo maior consumidor de doramas do mundo fora da Coreia do Sul.

"A sociedade coreana é muito machista, patriarcal e racista, mas a brasileira também é", diz Farawell, o roteirista de "My Way". "A inocência dos romances causa uma estranheza, mas também uma admiração nos brasileiros."

Sua avaliação encontra apoio na de Fábio Lima, criador da Sofá Digital, uma agregadora de conteúdo sob demanda que trabalha com serviços de streaming. Ele diz que o que explica o sucesso dos k-dramas, assim como o de reality shows sul-coreanos sem pegação ou brigas, é o seu viés conservador.

"Existe um segmento grande de jovens com uma visão mais conservadora que veem suas vidas retratadas nessas histórias. Isso vem na onda até da música gospel e do sertanejo, gêneros tradicionalmente mais conservadores, que são maiores do que o pop. No Brasil, tem muito mais conservadores do que progressistas, caso contrário o Bolsonaro não teria sido eleito."

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