'Sambas do Absurdo' ressoa a depressão do Brasil de Bolsonaro em novo disco

Rodrigo Campos, Gui Amabis e Juçara Marçal voltam ao projeto, ancorados na angústia ligada ao momento político do país

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São Paulo

Os sinos dobram pelos acordes de "Sé". As badaladas nos fazem enxergar toda a catedral, marco zero da arquitetura da melodia. A solidez da construção se alia a fantasmas do passado, como o terno velho de um certo Adoniran, que vaga pelas ruas de São Paulo. "Sambar eu digo é forma de lembrar/ Sustos, mistérios, que a gente guarda, guardará", define a letra.

"Sé" é a segunda faixa de "Sambas do Absurdo Volume 2", novo álbum do trio Rodrigo Campos, Gui Amabis e Juçara Marçal, que chega agora às plataformas digitais. Súbitas pausas e crescendos envolvem a canção, bem ao sabor do projeto existencialista encabeçado por Campos em 2017, ano de lançamento do primeiro volume.

A ideia surgiu após a leitura de "O Mito de Sísifo", publicado em 1942 pelo franco-argelino Albert Camus. Ele conta ter experimentado, na época, a falta de sentido da vida, decidindo mergulhar nos outros dois livros da trilogia do absurdo —"O Estrangeiro", de 1942, e "Calígula", de 1945.

Rodrigo Campos, Juçara Marçal e Gui Amabis lançam o segundo volume de "Sambas do Absurdo"
Rodrigo Campos, Juçara Marçal e Gui Amabis lançam o segundo volume de "Sambas do Absurdo" - Louie Martins

Em conversas com o artista plástico Nuno Ramos, o compositor encontrou o parceiro ideal para fazer as letras do primeiro disco e duas do segundo —além da própria "Sé", "Grão". Com samples de Amabis e voz de Marçal, o autor de "Bahia Fantástica", de 2012, e "9 sambas", de 2018, enveredou pelo samba, segundo ele, um gênero existencialista, levando em conta as heranças de Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola.

Na avaliação de Campos, o primeiro disco inaugurou a estética sonora do projeto, mas agora ele acredita ter alcançado o equilíbrio entre elementos eletrônicos e orgânicos. Se o conceito do projeto remonta à velha guarda, a base sinfônica do disco aponta para a modernidade. "Juntei uma orquestra muito antiga, com uma roupagem de samba diferente", explica Amabis, autor de "Ruivo em Sangue", de 2015, e "Miopia", de 2018.

Não se trata, portanto, de uma volta ao estilo orquestrado na década de 1960. O naipe de cordas é reproduzido nos samples de Amabis, valendo-se de uma lógica fragmentada e exercendo o papel da percussão. Em alguns momentos, nem parece que estamos ouvindo um disco de sambas. Escutamos até o violão de aço de Regis Damasceno, que agrega ao disco uma textura sonora incomum para o gênero.

No álbum, o absurdo não está posto somente na inquietude. O compositor, ao contrário, indica que sua angústia está ligada ao momento político do país, unindo as esferas pública e privada. "O momento do Brasil me levou para uma fase depressiva", afirma Campos. "Isso foi desencadeado pelo bolsonarismo, vi um país raivoso surgir, por isso as letras não são solares."

Um estado de distimia parece orbitar três canções. "Acordo e não sinto os meus pés", diz o verso inicial de "Memória Vida Outra". A saudade de outro Brasil reaparece em "Ladeira", lançado há mais de um ano, com letra de Romulo Fróes. "Muda a rua/ Muda o chão/ Não muda a cidade."

Em "Olhos Grandes", o samba surge na levada do cavaquinho de Campos. Marçal, vocalista da Metá Metá e autora dos álbuns solo "Encarnado", de 2014, e "Delta Estácio Blues", de 2021, canta em diferentes tons, acentuando o lirismo da canção, que fala de um país sem Deus.

"Sambas do Absurdo Volume 2" fica um pouco mais soturno em "Carlão Morreu", outra faixa em que Marçal empresta sua voz. A expressão do título é repetida como um mantra durante dois minutos e três segundos, pouco tempo para a elaboração de um luto.

"O absurdo nesse segundo volume se torna mais real, porque lidamos todo dia com ele, vivendo no Brasil nesse momento", ela diz.

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