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Cinema África

'A Fera' retrata a África com preconceito e falha nos efeitos especiais

Filme tem diálogos previsíveis e protagonistas negros extremamente desconectados de suas raízes culturais

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Maria Caú

A Fera

  • Quando EUA, 2022
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Idris Elba, Leah Jeffries e Mel Jarnson
  • Direção Baltasar Kormákur

Após a morte da ex-mulher, seu grande amor, o Dr. Nate Samuels viaja dos Estados Unidos à África do Sul para apresentar as duas filhas ao país e à cultura da mãe. Chegando a esse lugar distante, a família é confrontada por um ambiente inóspito e, em plena savana africana, passa a ser perseguida por um imenso leão descontrolado, que vem vitimando os moradores locais impiedosamente.

Lendo a sinopse, é possível imaginar um produtor afinado com as questões contemporâneas dizendo: "Façam alguma coisa para que ninguém nos acuse de lançar mais uma história sobre os perigos ocultos do continente africano a partir do olhar colonialista do americano branco".

Seu assistente prontamente sugeriria: "E se a família inteira for negra?". Pois 'A Fera' consegue construir esse mesmo o exotismo ultrapassado, mas agora a partir de uma família negra, que apenas reproduz o olhar colonialista dos brancos.

Idris Elba em cena do filme 'A Fera', dirigida por Baltasar Kormákur
Idris Elba em cena do filme 'A Fera', dirigida por Baltasar Kormákur - Lauren Mulligan/Divulgação

Muito embora tenha valor ver na tela negros protagonizando tramas de ação, dar a Idris Elba o papel que poderia ser de Matt Damon ou Tom Cruise não faz com que o filme magicamente deixe de lançar um olhar xenófobo e exotificante sobre o continente africano.

Ao ter por protagonistas personagens negros extremamente desconectados de suas raízes culturais, e que agem como os brancos salvadores agiriam, prova-se que não basta trazer representatividade sem mexer na empoeirada estrutura narrativa desse tipo de filme.

As duas filhas de Nate, Mare e Norah, demonstram completa ignorância sobre a cultura da mãe, contraditoriamente descrita como muito presente e bastante ligada à sua pátria de origem (tendo inclusive ensinado os rudimentos da língua local para Mare), e se espantam a todo momento com o vilarejo, que não tem wi-fi nem sinal de celular.

O roteiro desvia cuidadosamente dos possíveis caminhos da originalidade, construindo o enredo mais genérico possível de embate homem versus natureza selvagem (uma obsessão do diretor, o islandês Baltasar Kormákur, que tem no currículo filmes como "Evereste" e "Vidas à Deriva").

Nate representa o clichê do médico bonzinho que deseja se redimir por ter sido um pai ausente (e vai conseguir esse feito salvando as filhas de um leão enraivecido, que jeito melhor?).

As jovens também seguem arquétipos utilizados sem a menor imaginação: a adolescente problemática, em conflito com o pai; a doce filha mais jovem, a quem todos tentam proteger. O andamento consegue a proeza de ser previsível e implausível a um só tempo, com diálogos genéricos, que poderiam ser trechos reaproveitados de qualquer outro filme de sobrevivência.

Falas como "a lei da selva é a única lei que importa aqui" ou "estamos no território dele agora", ditas em voz empostada, não são mais constrangedoras que as sequências explicativas, que subestimam a todo momento o espectador, tentando sem sucesso aprofundar os conflitos dos personagens enlutados ou tecer críticas à caça ilegal.

A narrativa é pontuada pelos sonhos do protagonista com uma espécie de África mítica, que parece saída de uma sessão de fotos para uma revista de moda, e por uma trilha sonora que poderia ter sido retirada de um banco de sons classificados como "tipicamente africanos" por um algoritmo qualquer.

A fera do título, criada por uma computação gráfica questionável, ora se mostra um Jason felino, ora cede a alguns golpes estratégicos (o que for mais conveniente para a cena em questão).

A alegoria do revide inesperado da natureza torna-se risível na figura nada sutil desse imenso leão, que muitas vezes parece de fato demoníaco. "Diabo" é a palavra que uma das diversas vítimas usa para se referir a ele logo antes de morrer —e cabe notar que todos os negros africanos têm como função dramática principal na trama morrer rapidamente para criar tensão.

Fazer com que um animal ganhe contornos sobrenaturais que refletem o descaso humano pela natureza é uma intenção ousada, que Hitchcock alcança em "Os Pássaros". É preciso sublinhar que Kormákur não é nenhum Hitchcock.

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