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Cinema

'Il Buco', de Michelangelo Frammartino, é obra-prima que nega o óbvio

Bem construído, terceiro filme do diretor italiano contrapõe luz e sombras, céu e profundezas, progresso e arraigamento

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Il Buco

  • Quando Estreia nesta quinta (11)
  • Onde Nos cinemas
  • Classificação Livre
  • Elenco Claudia Candusso, Paolo Cossi, Mila Costi
  • Produção Itália, França, Alemanha, 2021
  • Direção Michelangelo Frammartino

De um cruzamento entre as poéticas de Otar Iosseliani, Ermanno Olmi e do casal Jean-Marie Straub e Danielle Huillet nasce o cinema de Michelangelo Frammartino. Isto quer dizer que o observacional e o documental têm imenso valor em suas ficções, ainda que falte a força declamatória da obra de Straub e Huillet, por exemplo.

Já em seu primeiro longa, "Il Dono", de 2003, observamos essa filiação em estágio embrionário. Numa pequena aldeia da costa italiana da Calábria, a tecnologia parece não fazer diferença: o toque de um celular é filmado como obra do sobrenatural, algo indesejado, postiço àquele lugar. As pessoas se envolvem em trabalhos cotidianos e nos pequenos conflitos surgidos por acaso.

Cena do filme 'Il Buco', dirigido por Michelangelo Frammartino - Divulgação

"As Quatro Voltas", de 2010, vem em seguida, com sua poética já plenamente cristalizada. Novamente, uma aldeia da Calábria, seus habitantes, os animais e um tempo único, de um lugar que não foi muito afetado pelo progresso.

Podemos objetar o movimento da câmera que oculta o momento exato em que um pequeno caminhão derruba uma cerca, até porque é um movimento meio mecânico. Mas o efeito humorístico surge mais forte quando a câmera volta e encontra o rebanho todo no meio da rua. É um humor típico de Iosseliani.

Seu terceiro longa, "Il Buco", estreia agora nos cinemas paulistanos. Nele, temos a contraposição entre a subida dos 132 metros de um arranha-céu em Milão e o trabalho de espeleólogos na Calábria, explorando uma longa caverna em direção ao centro da Terra. Os dois acontecimentos se deram em 1961, 60 anos antes da realização do filme. Frammartino nasceria só sete anos depois.

Luz e sombras, céu e profundezas, progresso e arraigamento, espaço aberto e espaço claustrofóbico. Nunca o cinema desse diretor havia trabalhado com tantas contraposições. Ao contrário do que se podia pensar, elas deixam a narrativa ainda mais concentrada, com uma estrutura brilhantemente desenvolvida.

Frammartino reconstitui a experiência dos espeleólogos com a sua maneira habitual de filmar —à distância. Seu cinema privilegia aquilo que chamamos de recorte. Uma vez que o espaço é delimitado pelo que a lente da câmera consegue captar, a arte cinematográfica consiste justamente no uso criativo desse espaço, na criação de uma verdadeira poesia espacial.

Mas o espaço também é delimitado pela luz. Nas cenas dentro da caverna, sobretudo, temos brilhantes momentos cinematográficos obtidos pelo recorte da luz, remetendo às pinturas rupestres, à analogia da caverna de Platão e a um prenúncio da sala de cinema. O que se mostra e o que se esconde. Cineastas que dominam essa equação tendem a ser superiores em sua arte.

Espaço e tempo são binômios que Frammartino utiliza como poucos no cinema contemporâneo. Mesmo quando há novidade em relação aos seus longas anteriores, como o uso mais acentuado, embora ainda escasso, de diálogos, ouvidos na reportagem televisiva que vemos no início, seu cinema permanece magistral nos enquadramentos e nos tempos dos cortes.

Em seus filmes, as coisas acontecem lentamente. É o tempo do campo, das pequenas cidades, da contemplação. Não é que as imagens durem bastante. Não se trata de uma dilatação do tempo, como no cinema de Andrei Tarkóvski ou Theo Angelopoulos. É mais uma ideia de acumulação de imagens belas, um anestesiamento pela contemplação das paisagens, mas também, no caso específico de "Il Buco", pelos feixes de luz dentro da caverna.

Nesse sentido, o novo de Frammartino remete a dois outros belos longas, curiosamente ambos de 2010: o português "Wolfram - A Saliva do Lobo", de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta, sobre a extração de minérios no interior de Portugal, e "A Caverna dos Sonhos Esquecidos", de Werner Herzog, que apresenta um dos usos mais inteligentes da tecnologia 3D.

São todos filmes que lidam com uma ideia de abstração a partir da captação do natural, mas também do trabalho humano de exploração da natureza. Eles nos mostram que o cinema é capaz de transformar uma imagem conforme a incidência de luz e a distância da câmera e do foco.

Se considerarmos que o belíssimo curta-metragem que o cineasta realizou em 2013, "Alberi", já significava uma ligeira progressão após "As Quatro Voltas", no sentido de atingir essa capacidade de contemplação e abstração, "Il Buco" se revela uma pequena obra-prima da negação do óbvio, do desvio para coisas que não costumam atrair os holofotes.

Frammartino busca a escuridão, o segredo das profundezas. Ele prefere chegar mais perto do centro da Terra, do âmago das coisas, podemos dizer, do que se afastar cada vez mais rumo a um espaço incerto. É também de solo, rocha, raiz, cultivo, cultura que seu cinema se faz.

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