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Televisão

Jô Soares e Capitão Gay peitaram a homofobia muito antes da Marvel

Personagem do 'Viva o Gordo' reforçou estereótipos, mas colou a então temida homossexualidade à imagem do justo e bondoso

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Se hoje em dia a diversidade pauta boa parte dos filmes e séries que estreiam por aí, com a Marvel fazendo uma festa autocelebratória sempre que um super-herói dá a entender que foge dos padrões heteronormativos, nos anos 1980 ninguém estava muito interessado no assunto.

Ou quase. E Jô Soares, morto nesta sexta-feira, aos 84 anos, era parte do seleto grupo que já naquele tempo pensava em colorir a televisão, mesmo que à moda de um homem cisgênero e heterossexual.

jô soares
Eliezer Motta e Jô Soares como Carlos Suely e Capitão Gay, em 'Viva o Gordo' - Divulgação

Criado há 40 anos para o "Viva o Gordo", humorístico que o artista comandava e estrelava na Globo, o Capitão Gay se tornou um sucesso arrebatador em todo o país. Até hoje é lembrado como um dos personagens mais marcantes da televisão brasileira.

Com seu collant preto sobre um modelito agarrado e cor-de-rosa, adornado por acessórios de pérolas, plumas e uma máscara purpurinada, o Capitão Gay era um super-herói homossexual, um "defensor das minorias, contra as tiranias", que aparecia para combater os crimes e as injustiças para os quais "não havia um homem nem uma mulher para resolver". O look era inegavelmente espalhafatoso, bem como o jeito do personagem.

Hoje, sua contribuição para a luta LGBTQIA+ é certamente discutível, mas num contexto como o Brasil dos anos 1980 –década em que a epidemia de Aids espalhou desinformação, em que ondas de homicídios de gays e travestis tomaram capitais e em que reportagens de TV registraram gente dizendo que "tem mais é que assassinar mesmo"–, o Capitão Gay levou a muitas famílias brasileiras o seu primeiro contato claro com a homossexualidade.

Isso ocorreu não na forma de alguém embebido em desvios de caráter, como se lia nas entrelinhas de outros personagens, mas por meio de um sujeito amável e disposto a fazer o bem. Mais que isso, ele com frequência enfrentava tipos que justamente repetiam discursos homofóbicos –imagine o nó na cabeça de quem pensava igual e, de repente, se via refletido nos vilões do programa.

O Capitão Gay tinha ainda um quê de filme B, de trash. Numa comparação certamente influenciada pela silhueta de Jô Soares, sua imagem lembrava a de Divine no bastião do cinema queer "Pink Flamingos", de 50 anos atrás. Mas a irreverência e a impaciência com uma sociedade heteronormativa também sustentam o paralelo.

A veia humorística, ácida e nonsense, era outro ponto de encontro, que abre caminho para uma alusão ao musical "The Rocky Horror Picture Show", de 1975, que usava seus personagens LGBTQIA+ para peitar o mundinho blasé da época.

Se no filme Tim Curry empunhava um constrangedor raio laser, em "Viva o Gordo" Jô preparava drinques de gim para golpear o rosto de seus inimigos. E se o britânico cantava "não sonhe, seja", o brasileiro dizia "gay quer ser alegria".

​Divine, Curry e Jô viveram personagens inegavelmente afetados, que jogavam com estereótipos. O Capitão Gay tinha língua presa, usava rosa, não conseguia conter a emoção e reforçava a ideia da bicha folclórica. É reduzir e simplificar demais o que é a homossexualidade. Mas ao menos havia um fundo político no quadro, estrelado também pelo ainda mais escandaloso Eliezer Motta, o ajudante à la Robin chamado Carlos Suely.

O tom político era sutil? Muito. Ajudou a colar no imaginário popular um só tipo de homem gay? Com certeza. Fazia humor em cima de um grupo marginalizado? Claro. Mas havia também uma lição por trás –que, 30 anos depois, ainda não foi aprendida por gente como Marcelo Serrado e seu Crô ou Paulo Betti e seu Téo Pereira, incapazes de extrapolar o lugar-comum de chaveirinho de madame, bicha fútil ou gay delicado.

Esses exageros todos eram usados pelo Capitão Gay justamente para chocar os vilões –e, por tabela, os espectadores– com a diversidade de um novo tempo, para dizer que tudo bem ser gay. Num episódio, por exemplo, ele precisa encontrar o "soro da personalidade" e deixa claro que, se lançada, a mistura iria "entregar muito enrustido". Em outro, tira sarro de um sujeito machão que diz que é um homem "sério", dizendo que só falta alegria.

A imagem do super-herói, de alguém justo e a ser idolatrado, era sempre atribuída a galãs machões. Ver isso colado a um homossexual era uma boa novidade. No fim, o importante mesmo era que o Capitão Gay de Jô Soares resolvia os problemas e salvava o dia, entoando uma ainda atual música-tema –"abaixo o machismo enrustido, seja logo alegre e assumido".

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