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Jô Soares viu sua fama ofuscar triunfo como autor, diz Tony Bellotto

Escritor acrescentou seu ingrediente secreto, o humor, ao caudaloso filão dos romances históricos e de suspense

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Tony Bellotto

Em 2015 entrei em contato com Jô Soares para lhe pedir um conto policial ambientado num bairro de São Paulo. Eu editava um livro da editora americana Akashic para uma série noir em que diferentes cidades são temas centrais de histórias de crime.

Na série, um editor convida escritores de uma determinada cidade a escrever um conto noir ambientado num bairro específico da cidade homenageada, se é que podemos chamar de "homenagem" uma sucessão de diferentes crimes. Talvez cidade "alvejada" seja um termo mais preciso.

Jô Soares foi escritor de romances policiais de sucesso
Jô Soares foi escritor de romances policiais de sucesso - Marcio Scavone

Eu já havia editado "Rio Noir", e minha condição anfíbia de escritor paulistano morador do Rio de Janeiro me permitiu ser designado para editar também o "São Paulo Noir".

Assim como havia procedido em "Rio Noir", optei por escolher escritoras e escritores de diferentes estratos literários. Mas especialistas no universo noir eram fundamentais para o sucesso da empreitada.

Foi assim que, entre outras e outros, MV Bill, Victoria Saramago, Adriana Lisboa e Luiz Eduardo Soares se misturaram a Raphael Montes e Luiz Alfredo Garcia-Roza, no "Rio Noir", e Ferréz, Vanessa Bárbara, Olívia Maia, Drauzio Varella, Ilana Casoy e Jô Soares, em "São Paulo Noir".

Porque não há como negar, Jô Soares é, por definição, um autor de livros policiais. Policiais históricos e cômicos, mas "policiais" no sentido em que um enigma sempre conduz suas narrativas.

O conto que Jô escreveu para "São Paulo Noir" foi "Meu Nome é Nicky Nicola". O bairro por ele escolhido para ambientar a narrativa, a Mooca. A ação se passa em 1960.

Nicky Nicola é um detetive paródico, assim como um dos grandes detetives da literatura policial brasileira, Ed Mort, criação de Luis Fernando Verissimo. É interessante que o talento literário de Luis Fernando Verissimo e Jô Soares tenha alçado detetives paródicos ao mesmo olimpo de detetives "sérios", como o Mandrake, de Rubem Fonseca, ou o delegado Espinosa, de Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Nicky Nicola vive num puxadinho na laje em cima de um botequim na Mooca, e Jô faz questão de justificar logo no início do conto o hábito do detetive de não usar roupas íntimas: "Não usava cueca por dois motivos. Primeiro porque não tinha. Segundo, porque achava inútil gastar dinheiro numa peça do vestuário que ninguém via".

"Meu Nome é Nicky Nicola" tem todos os ingredientes da prosa de Jô Soares: rigor com os dados históricos, ironia aguda e perene, fluência literária, efeitos cômicos precisos como soco no queixo ou cócega nas axilas, e a invejável capacidade de prender a atenção de qualquer uma, um, "ume" ou "umx".

Os livros de Jô Soares são best-sellers conhecidos e amplamente consumidos. Mas talvez sua popularidade avassaladora como comediante, entrevistador e figura pública tenha ofuscado um pouco seu reconhecimento pleno como escritor.

Ele publicou seu primeiro e mais aclamado romance, "O Xangô de Baker Street", em 1995. A trama é inventiva: um violino Stradivarius desaparecido acaba por proporcionar a inusitada visita de Sherlock Holmes ao Brasil imperial.

Podemos vasculhar as raízes de "O Xangô de Baker Street" em "O Nome da Rosa", sucesso estrondoso de Umberto Eco, publicado em 1980. O romance do escritor, filósofo e linguista italiano causou uma verdadeira revolução no mercado editorial mundial com sua bem dosada alquimia de romance histórico com história policial, resultando numa combustão literária de tirar o fôlego, ao mesmo tempo popular e erudita.

As publicações —e o sucesso— dos romances históricos "Boca do Inferno", de Ana Miranda, e "Agosto", de Rubem Fonseca (este também um thriller palpitante), em 1990, ainda contribuíram para que Jô encontrasse atmosfera, tema e tom para seu romance de estreia.

Bastou que acrescentasse seu ingrediente secreto, o humor, ao caudaloso filão dos romances históricos e de suspense. A partir daí se seguiram obras de excelência, todas urdidas com o brilho de sua carpintaria –"O Homem que Matou Getúlio Vargas", "Assassinatos na Academia Brasileira de Letras" e "As Esganadas".

João Gilberto Noll, grande escritor gaúcho, afirmou numa entrevista no final do século 20 que percebia em várias escritoras e escritores brasileiros do período uma obsessão por escrever um "policial descolado".

É verdade, nos esforçávamos e nem sempre dava certo.

Jô Soares escreveu quatro deles com qualidade e sucesso suficiente para deixar todos nós morrendo de inveja.

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