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'O Bem Amado' traça relação entre Sucupira e o Brasil de Bolsonaro na pandemia

Montagem estrelada por Cássio Scapin chega ao palco do Sesc Santana nesta sexta-feira, com músicas de Zeca Baleiro

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São Paulo

Foi por pura obra do acaso, que, lendo uma entrevista do ator Cássio Scapin, o diretor e produtor Ricardo Grasson se viu enredado pelo desejo de levar aos palcos um dos clássicos mais incensados e —talvez por isso— pouco montados do teatro brasileiro.

"O Bem Amado" é uma das principais obras do dramaturgo baiano Dias Gomes, que ganhou adaptação para as telas, primeiro como uma telenovela, exibida em 1973 pela TV Globo e estrelada por Paulo Gracindo, depois como um filme protagonizado por Marco Nanini sob a direção de Guel Arraes, lançado em 2010.

Elenco da peça 'O Bem-Amado', adaptação do texto do dramaturgo baiano Dias Gomes
Elenco da peça 'O Bem Amado', adaptação do texto do dramaturgo baiano Dias Gomes - Ronaldo Gutierrez/Divulgação

Scapin, que deixara público seu desejo de dar vida ao prefeito da fictícia Sucupira, recebeu um telefonema de Grasson pedindo permissão para "movimentar os pauzinhos". Permissão dada, o produtor começou a organizar as engrenagens que fariam a montagem acontecer.

Com Scapin no projeto, Grasson saiu à procura de antigos parceiros para organizar uma proposta de montagem. Com a pandemia ainda dando seus primeiros passos, mas já obrigando o isolamento social, o diretor conseguiu a adesão do músico Zeca Baleiro, do dramaturgo Newton Moreno, do produtor Rodrigo Velloni, do multiartista Marco França e da rede Sesc. Nasceu então a versão de "O Bem Amado" que chega ao palco do Sesc Santana nesta sexta-feira.

A montagem busca uma nova roupagem para o clássico de Dias Gomes, sem, contudo, alterar uma vírgula do texto original. "A obra é tão bem acabada, tão icônica, que não fazia sentido adaptar. Essas personagens ainda estão tão coladas a uma realidade política, que parece que o texto foi escrito hoje. Ele resistiu bravamente ao tempo, feliz ou infelizmente", conceitua Moreno, convidado a assinar a adaptação, mas que acabou assumindo as letras para as canções de Baleiro.

"Eu queria participar de alguma forma. Como a gente não vai fazer a adaptação de uma obra tão bem acabada, veio essa ideia de construir músicas para uma abordagem musicada. Essas letras são homenagens a esses personagens", diz.

A ideia de transformar a obra em um musical não é nova. Em 2014, a Maestro Produções tentou captar R$ 3 milhões via Lei Rouanet para uma adaptação musical que seria dirigida por José Possi Neto e estrelada por Daniel Boaventura e Vladimir Brichta. O projeto não foi viabilizado por falta de patrocínio.

O mesmo fim teria a adaptação dirigida por Grasson, não fosse a rede Sesc, que, mesmo durante a pandemia, abraçou o projeto e o manteve vivo. O diretor chegou a inscrever a montagem na Lei de Incentivo à Cultura, que nem sequer foi aprovado.

"Inscrevemos, solucionamos todas as diligências e não é que tenha sido reprovado, eles nem sequer responderam. Não há interesse deste governo de que uma obra de um autor considerado subversivo, falando de assuntos políticos, seja encenada", declara o diretor.

"O Bem Amado" narra as tramoias políticas de Odorico Paraguaçu, prefeito da fictícia cidade de Sucupira, no interior nordestino, que busca a reeleição construindo um cemitério na cidade para que as pessoas possam ser enterradas em suas terras. Superfaturada, a obra enfrenta resistência da oposição e se torna um elefante branco quando nenhum habitante da cidade morre.

"Você está ouvindo a história do Brasil nos dias atuais. Tudo aquilo que o Dias pensou para esta cidade, para este político corrupto, que só pensava em se eleger em cima dos mortos, é um paralelo muito forte com o que vivemos hoje, as conexões são infinitas. Esse jogo do poder é facilmente linkado com o inominável, o paralelo é automático", diz Grasson.

Scapin concorda. "Não faltou inspiração! Vivemos um processo de autoritarismo global, da reversão de conquistas num Brasil em que você pira. Assustadoramente, o Brasil ainda não se libertou de um lugar de necessidade de um pai, com uma elite absolutamente desinteressada em participar da melhora geral da população. Essa elite sucupirana é o retrato da elite brasileira que se sustenta no favorecimento de um governo. Nosso pensamento ainda é formado nessa política de Sucupira", afirma.

A montagem, que cumpre temporada até o dia 11 de setembro, é também um tributo ao centenário de Dias Gomes, a ser celebrado em 19 de outubro. As comemorações, contudo, seguem tímidas. O autor agora nomeia uma rua próxima ao Museu de Arte do Rio de Janeiro, e o Itaú Cultural, em São Paulo, pretende produzir uma exposição sobre sua vida e suas criações.

Outras obras do autor também batalham por montagem, entretanto sem o apoio da Lei de Incentivo à Cultura. A companhia BR-116, por exemplo, teve seu projeto de captação negado pela Secretaria Especial da Cultura. O grupo encabeçado por Bete Coelho, Gabriel Fernandes e Ricardo Bittencourt pretendia circular com o espetáculo "O Santo Inquérito", escrito em 1966.

O dramaturgo Dias Gomes em frente à igreja da Glória, no Rio de Janeiro, em 1997, cujas escadarias serviram de palco para uma montagem ao ar livre de 'O Pagador de Promessas' - Patrícia Santos/Folhapress

Com elenco formado por dez atores e um quarteto de músicos, "O Bem Amado" conta com nomes como Eduardo Semerjian, Rebeca Jamir, Luciana Ramanzini, Kátia Daher, Ando Camargo, Heitor Garcia, Roquildes Júnior, Marco França e o ator convidado Guilherme Sant’Anna, além de Scapin.

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