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'O Funk na Batida' vê as tensões entre a música e a Justiça no país

Livro de Danilo Cymrot mostra que a violência contra negros persiste ainda que Anitta tenha exportado o gênero

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Acauam Oliveira

Doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade de Pernambuco

O Funk na Batida: Baile, Rua e Parlamento

  • Preço R$ 85 (384 págs.); R$ 42,50 (ebook)
  • Autor Danilo Cymrot
  • Editora Sesc

No mesmo 2019 em que Anitta atingia o topo mundial do Spotify e o canal KondZilla se tornava o quinto maior do YouTube, dez envolvidos no Baile da Gaiola, no Rio de Janeiro, teriam sua prisão decretada pela Justiça, e nove jovens morreriam pisoteados no Baile da Dz7, em Paraisópolis, durante uma ação policial.

Esse conjunto contraditório de eventos, que aponta ao mesmo tempo para a consagração internacional do funk —capaz de mobilizar renda e recursos financeiros tanto para sujeitos marginalizados quanto para grandes corporações— e para a repressão contínua de que é alvo, é um dentre os muitos exemplos apresentados por Danilo Cymrot em seu livro "O Funk na Batida", publicado pelas Edições Sesc.

Foto que ilustra capa do livro 'O Funk na Batida: Baile, Rua e Parlamento' - Vicent Rosenblatt/Divulgação

A obra acompanha de perto as relações tensas e ambíguas entre o aparato jurídico brasileiro e suas populações periféricas. Relações essas que extrapolam o âmbito meramente cultural para dizer algo de mais profundo sobre nós.

Como bem adverte Hermano Vianna, "O Funk na Batida" —resultado ampliado de uma pesquisa de mestrado realizada pelo autor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo— é menos sobre funk do que sobre o Brasil. Correta percepção, desde que nos atentemos para o fato de que não se trata de um "Brasil" qualquer.

Se há pouco a relação do país com sua cultura popular poderia ser lida na chave mais otimista do "encontro", o trabalho de Cymrot apresenta ganhos significativos ao salientar um elemento decisivo de cisão: o "encontro" dos aparatos jurídicos e repressivos do Estado com corpos negros e periféricos em movimento. Ou seja, o Brasil encarado do ponto de vista da guerra contra os pobres, a partir de dois de seus principais polos de tensão.

Ao se concentrar nas inúmeras formas de articulação entre os processos de glamorização e criminalização do gênero, Cymrot encontra um elemento estrutural importante do racismo brasileiro. No caso, um exemplo nada original do velho processo brasileiro de racialização, instituído desde antes da abolição. Formas culturais negras progressivamente absorvidas enquanto nacionais; corpos negros violentamente excluídos da festa. Cultura negra nacional, corpo negro marginal.

Assumindo uma perspectiva crítica à criminologia tradicional, o livro é uma espécie de mediador de conflitos entre o funk e poder público, ouvindo os diversos argumentos conflitantes, analisando suas motivações e assumindo um ponto de vista que aposta (utopicamente?) na possibilidade de resolução dos impasses entre corpos negros e Estado antidemocrático.

O resultado, dos mais interessantes, é particularmente feliz, sobretudo quando escapa aos bem conhecidos binarismos em que frequentemente recaem as discussões envolvendo cultura e periferia.

O livro se dispõe a defender o funk contra suas principais acusações —apologia ao crime, associação com o tráfico de drogas, valorização da pedofilia e do machismo— apresentando inúmeras evidências que deitam por terra tais argumentos, mas também apresenta críticas mais legítimas, tais como a atuação controversa de MC's menores de idade no funk "putaria", ou reclamações de moradores de periferia em relação aos bailes e a seus excessos.

Sem jamais perder de vista, contudo, a forma com que tais críticas são mobilizadas para justificar a repressão violenta e indiscriminada aos bailes, ou as condenações generalizadas ao gênero como um todo.

Em momentos pontuais, os esforços do livro para não deixar de fora nenhuma das vozes envolvidas no confronto pode parecer ao leitor não especializado algo cansativo. Tal opção, entretanto, cumpre bem a função de construção minuciosa de um "caso jurídico".

Em outros, mais delicados, tal modelo parece deixar escapar um esforço de síntese dialética entre elementos que são contraditórios apenas na superfície —como a própria relação de complementaridade entre glamorização e criminalização das culturas periféricas, base mesma do modelo de racismo à brasileira.

Por vezes, a busca por explorar o máximo de complexidade das relações acaba por deixar de lado uma compreensão mais sistêmica do todo.

Quando afirma que, no ano de 2020, o então governador de São Paulo João Doria apresentou uma "postura contraditória" em relação ao funk, prometendo mobilizar a Polícia Militar para proibir a realização de bailes funk e parabenizando MC Fioti pelo funk pró-vacina, o livro deixa passar o fato de que existe uma base higienista a articular as atitudes.

Elas são contraditórias apenas em aparência. A celebração de um funk higienizado, pró-sistema e, de preferência, branco, de um lado; e a criminalização dos bailes de periferia, de outro.

De todo modo, tais momentos em nada prejudicam a clareza no desenvolvimento dos argumentos principais da obra, e o leitor sai convencido de que as relações entre o funk e o poder público são muito mais complexas do que a simples recusa incondicional. E ainda de que o punitivismo é uma estratégia fadada ao fracasso —e, por isso mesmo, adotada à exaustão.

Entende ainda que o modo de existência e resistência cultural periférica é marcado por ambiguidades que formam um modelo subversivo de adesão, e que o funk talvez seja o gênero contemporâneo com maior capacidade de captar esteticamente as contradições do país, sobretudo as que se deseja ocultar.

No fim das contas, sobressai o principal mérito do livro: a coragem necessária para encarar as contradições do funk e do sistema jurídico brasileiro, cujo saldo —marcadamente violento— diz respeito a todos nós.

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