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Os assassinatos da vida real que nem Agatha Christie conseguiu resolver

Homicídios suspeitos ocorridos no Reino Unido do século 19 continuam intrigando até hoje

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Da Redação - BBC News Mundo
Agatha Christie é autora de 66 romances - Getty Images/BBC News Brasil

Um grupo de pessoas. Um lugar tranquilo. Uma morte. Um grande mistério. Um detetive inesquecível. Um "grand finale" em que todos os personagens envolvidos se reúnem para uma dramática revelação do desfecho.

Este é um enredo familiar à legião de leitores de Agatha Christie, escritora britânica autora de 66 romances policiais traduzidos para mais de 145 idiomas. Uma mulher cativante que foi inspirada pelos mistérios da vida real, casos que nunca foram resolvidos e que ganharam sobrevida em suas obras.

Alguns a intrigaram particularmente, não só porque a justiça não foi feita, mas porque os suspeitos, apesar de não terem sido condenados no tribunal, foram condenados pela opinião pública, carregando a pecha de culpados pelo resto dos seus dias —situação que a autora ilustrou em "Inocência Trágica".

Na obra, a morte de Charles Bravo é um caso em aberto que levanta uma série de suspeitas que chega a destruir a vida de inocentes, especialmente a de sua mulher, Florence.

Em "Um Crime Adormecido", por sua vez, a adorável detetive Miss Marple aponta que o assassinato "não foi comprovado no caso Madeleine Smith", mas que muitos acreditavam que ela era culpada.

Quem eram essas mulheres e o que aconteceu?

Alguns dos casos foram detalhados pelo programa de rádio e podcast da BBC "Lady Killers", que retrata mulheres suspeitas de homicídio em casos no século 19.

Madeleine Smith e Pierre Emile L'Angelier: romance proibido com fim trágico - BBC News Brasil

Assassina manipuladora ou ingênua manipulada?

Madeleine Smith era uma figura da alta sociedade em Glasgow, na Escócia, na década de 1850. Ela vivia uma vida que parecia perfeita: ia a bailes e concertos, passeava pelas lojas nas áreas comerciais da cidade e passava os verões na casa de campo de sua família.

Mas tinha um segredo: contra todas as regras da decência da era vitoriana (período de reinado da rainha Vitória no Reino Unido, entre 1837 e 1901), ela embarcou em uma aventura amorosa com um homem dez anos mais velho que ela e, ainda por cima, um balconista imigrante, alguém muito abaixo de sua posição na hierarquia social.

Seu nome era Pierre Emile L'Angelier. Ela o conheceu em 1855, quando tinha 19 anos. Em pouco tempo, se apaixonaram, passaram a trocar cartas com frequência e se tornaram íntimos.

Dois anos depois, contudo, Madeleine Smith ficou noiva de um rapaz escolhido por seus pais —alguém, obviamente, que frequentava os mesmos espaços que ela na aristocracia britânica.

Quando L'Angelier descobriu, os dois brigaram.

Smith queimou as cartas trocadas entre os dois e implorou a L'Angelier que devolvesse as que ele tinha, temendo que pudessem eventualmente ser descobertas e arruinar sua reputação.

De coração partido e ciumento, ele não apenas recusou o pedido, como também ameaçou enviar a correspondência ao pai dela para expor o relacionamento.

Em pânico, Smith implorou que eles se encontrassem.

Na noite de 22 de março de 1857, L'Angelier adoeceu e morreu por envenenamento com arsênico. Smith foi acusada de assassinato. Se fosse considerada culpada, seria enforcada.

O julgamento causou alvoroço.

Suas mais de cem cartas, destinadas apenas aos olhos de seu amante, foram lidas em público para que todos ouvissem.

As evidências mais públicas de seu relacionamento, considerado escandaloso pela sociedade da época, foram produzidas com sua própria caligrafia e, de acordo com a Promotoria, representavam causa provável para o assassinato.

"Sua visita de ontem à noite acabou. Eu ansiava tanto por ela. Como passou rápido. Querido Emile, amo você cada vez mais. Sou sua mulher, porque nunca poderei ser a mulher de outro depois de nossa intimidade."

Detalhe de carta de Madeleine: dezenas delas foram encontradas com Pierre Emile L'Angelier - BBC News Brasil

Ela tinha perdido a virgindade fora do casamento, algo que, naquela época, arruinava a vida de garotas como ela —por ser um impedimento para que se casasse com qualquer outro.

Durante a investigação, a polícia descobriu que Smith havia comprado arsênico —segundo ela, para usar em sua pele.

A acusação também contou com o depoimento de uma testemunha que disse que L'Angelier lhe havia dito que Smith havia feito um chocolate quente para ele quando se encontraram pouco antes de sua morte. Essa teria sido a forma como Smith o teria envenenado.

Com a ajuda do eminente toxicologista sir Andrew Douglas Maclagan, a defesa contestou esse argumento.

Não só é verdade que o arsênico pode ser usado como cosmético, disse o especialista, mas, para ser letal e indetectável quando ingerido, ele deve ser completamente dissolvido no fogo por meia hora. Tentar transformá-lo em chocolate quente seria ainda mais difícil.

O júri emitiu o veredito: o crime não havia sido comprovado.

Smith não foi considerada culpada nem inocente. Ele estava livre, mas sua reputação estava maculada para sempre.

Não havia escolha a não ser mudar de nome e desaparecer.

Morte de Charles Bravo (1845-1876) causou comoção na sociedade vitoriana - Getty Images/BBC News Brasil

Assassina implacável ou mulher assediada?

Em 21 de abril de 1876, em uma residência luxuosa batizada de The Priory, no bairro de Balham, no sul de Londres, um advogado chamado Charles Bravo morreu de envenenamento após três dias de agonia. Ele bebera água contendo antimônio de potássio.

Em seu leito de morte, ele não disse quem poderia tê-lo envenenado e permaneceu estranhamente calmo durante seus últimos dias.

Os seis médicos que o trataram e os detetives encarregados do caso interpretaram seu silêncio como um sinal de que ele havia cometido suicídio.

Ainda assim, amigos e familiares de Bravo, não convencidos, exigiram outra investigação.

Foi então que o caso começou a atrair atenção da imprensa. Inicialmente, os artigos de tabloides apontaram como suspeito um cocheiro demitido por Bravo, que teria gritado em um pub que "o senhor Bravo estará morto em cinco meses", e depois a dama de companhia Jane Cox, que supostamente Bravo havia ameaçado demitir. Em pouco tempo, contudo, os holofotes se voltaram para sua mulher.

Durante os três dias em que Florence Bravo testemunhou, os advogados da família Bravo estavam ocupados descobrindo detalhes de um relacionamento seu anterior com o eminente doutor James Manby Gully, médico cujos clientes incluíam Charles Darwin e Florence Nightingale.

Com esses ingredientes, o que ficou conhecido como "o mistério de Balham" tornou-se um dos casos de assassinato mais sensacionais da era vitoriana, com cobertura diária em jornais e tabloides e multidões se aglomerando no bairro para acompanhar a história.

O inquérito acabou virando uma investigação sobre a moralidade sexual de Florence Bravo, que não se encaixava no roteiro prescrito para as mulheres da época.

Aos 19 anos, ela tinha se casado com Alexander Ricardo, filho único de John L. Ricardo, o fundador da International Telegraph Company, no que os jornais descreveram como "a união de duas grandes famílias da Europa".

Ricardo era, contudo, um alcoólatra violento —e Florence Bravo decidiu se separar dele, apesar dos apelos de seus pais para que ela permanecesse no casamento.

Antes que os papéis da separação fossem concluídos, Ricardo morreu de hematêmese (perda de sangue pela boca), desencadeada pela embriaguez, em um apartamento em Colônia, na Alemanha, que dividia com "uma companheira".

Com a herança —e os cabelos tingidos de vermelho—, Florence Bravo viajou pela Europa com o doutor Gully, casado e 37 anos mais velho do que ela.

A vida de Florence Bravo (1845-1878) não seguiu o roteiro tradicional das aristocratas britânicas do século 19 - Getty Images/BBC News Brasil

Em 1873, ela sofreu um aborto espontâneo ou, segundo especulações, um aborto induzido por Gully para evitar novos escândalos.

O que quer que tenha acontecido deixou Florence Bravo muito doente, e a experiência a levou a terminar o relacionamento com o médico e buscar reconciliação com os pais.

Com a intenção de restaurar a posição da jovem na sociedade, sua dama de companhia, Jane Cox, planejou encontros com Charles Bravo, que acabaria se tornando seu segundo marido.

Quando ele morreu, eles estavam casados ​​havia apenas cinco meses, mas o relacionamento já mostrava sinais de tensão.

Bravo tinha ciúmes da mulher e, apesar de ter obtido um acordo financeiramente favorável antes do casamento, estava frustrado por não ter controle ilimitado sobre a vasta fortuna dela, única razão pela qual tinha se casado, segundo disse ao advogado em sua primeira visita após o casamento.

Florence Bravo havia sofrido dois abortos consecutivos nesse curto espaço de tempo e, embora estivesse em má forma, seu marido insistiu que ela cumprisse com as ditas "obrigações conjugais".

No final, a investigação não conseguiu produzir provas suficientes para acusar alguém da autoria do crime.

'Uma vida de devassidão, loucura e vício', diz um jornal conservador da época sobre Florence Bravo - BBC News Brasil

Florence Bravo nunca foi levada a julgamento. Para a opinião pública, entretanto, ela conseguiu se safar do assassinato do marido.

"E, assim, Florence Bravo, abandonada por sua família, morreu sozinha por decorrência da bebida. A senhora Cox, condenada ao ostracismo com três filhos pequenos, viveu até ficar velha sabendo que a maioria das pessoas que conhecia achavam que ela era uma assassina. Doutor Gully se viu arruinado profissional e socialmente", diz um personagem de "Inocência Trágica".

"Alguém era culpado e se safou. Mas os outros eram inocentes e não se safaram."

E esse culpado, segundo acreditava Agatha Christie, teria sido o médico.

Sua teoria era que Gully havia prescrito remédios para Charles Bravo, que sofria de neuralgia e reumatismo, e que uma das pílulas do frasco estava envenenada com antimônio.

"Sempre pensei que ele era a única pessoa que tinha um motivo avassalador e o tipo de personalidade certo: extremamente competente, bem-sucedido e considerado acima de qualquer suspeita", escreveu ela em uma carta ao editor do Sunday Times Magazine em 1968.

Este texto foi originalmente publicado aqui.

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