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'Pesado', livro de Kiese Laymon, é caleidoscópio da experiência preta

Narrando a história para sua mãe, americano mergulha no desafio de morte que a comunidade negra enfrenta há tempos

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Vanessa Oliveira

Jornalista, doutora em ciências sociais e professora de jornalismo das universidades Mackenzie e PUC, em São Paulo

Pesado

  • Preço R$ 59,90 (288 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Kiese Laymon
  • Editora Dublinense
  • Tradução Davi Boaventura

Um amigo conta que, quando tinha sete anos de idade, recebeu um alerta de sua mãe. "Quando a polícia abordar você, se mandar você correr, você anda." Quando, e não caso.

Ele não entendeu aquela conversa até ser obrigado a pôr o ensinamento em prática, três anos depois. Discutiu com o filho de um policial durante uma partida de futebol na rua de um bairro nobre de São Paulo. E foi embarcado à força numa viatura, junto com um amigo mais novo.

Passaram horas rodando, ouvindo ameaças e apanhando, até serem largados na entrada de uma favela. Quando saíam, um dos policiais atirou para cima e ordenou que corressem. Esse amigo segurou forte na mão do coleguinha e disse "não corre". "Vamos andando, tá?"

A imagem dessa mulher negra brasileira, falando de morte com o filho em fase de alfabetização, encontra eco nas 284 páginas de "Pesado".

Ilustração de Luísa Zardo para o livro 'Pesado', de Kiese Laymon, publicado no Brasil pela editora Dublinense
Ilustração de Luísa Zardo para o livro 'Pesado', de Kiese Laymon, publicado no Brasil pela editora Dublinense - Luísa Zardo/Reprodução

Rígida e onipresente são dois dos adjetivos usados em resenhas para descrever Mary DeLorse Coleman, mãe do autor Kiese Laymon, a quem ele endereça suas memórias. A mãe do primeiro parágrafo certamente também já foi chamada assim.

Mas, nos dois casos, tanto faz –ambas, pela nitidez com que liam seu entorno, passaram a vida tomadas pelo pânico de ter posto no mundo um filho negro. A aparente dureza é colateral.

Professora, doutora e militante por direitos humanos, Mary Coleman é duplamente musa de "Pesado". É herança dela o amor pelas palavras, que fez de Laymon também professor, além de autor de mais dois romances, ainda não traduzidos para o português, "Long Division" e "How to Slowly Kill Yourself and Others in America".

E é a ela que o autor se dirige —diretamente, como "você"— costurando a autobiografia sem nunca perder de vista o esforço dessa mãe em preparar o filho para enfrentar um universo que se alimenta de sua exclusão.

Laymon parece entender, entre descrições de surras e broncas, que, na tentativa de ensinar rebeldia e sobrevivência, história negra e o uso correto do inglês, ela, também invisibilizada, transborda, exagera, acerta, erra e traumatiza.

E o trauma é tal que, logo no início do livro, Laymon confessa que preferia ter escrito uma mentira, mas não conseguiu. "Comecei de novo e escrevi a memória que desejávamos me ver esquecer."

A começar pela adolescência "feliztriste", quando violência simbólica e objetiva, pseudoamores, carência e obesidade são adicionados à já dura realidade de ser um negro pobre no estado americano de Mississippi. Azeitada pela comodificação escravista e pela consequente atomização social, essa engrenagem transforma vítimas sistêmicas em algozes domésticos. A opressão é interiorizada ao ponto de ela explodir em ambiente fechado.

Tudo é afetado e vira tema para Laymon —masculinidade, estupro, relações. Em cada fresta do cotidiano se desvela uma política de morte que, antes de qualquer abordagem policial, já se espalhou pela escola, pelo caixa do supermercado, pelos vícios.

Esse contexto social se entrelaça ao individual já no nome do romance, que faz referência tanto ao corpo do autor quanto à aspereza do relato. Os dilemas da integração racial borbulham, enquanto Laymon acompanha as acusações de assédio sexual contra o controverso Clarence Thomas, então o único juiz negro na Suprema Corte dos Estados Unidos; o espancamento de Rodney King pela polícia —que desencadeou as revoltas de Los Angeles, nos anos 1990— ou ainda o assassinato de Tamir Rice, garoto de 12 anos baleado por um policial branco.

Sua história é também a história recente dos Estados Unidos, aquela que ainda carece de revisão, como ele mesmo diz. É o que dilacera a subjetividade das pessoas, antes de finalmente as descartar, que obriga uma mãe a cruzar a linha vermelha de acatar a possibilidade da morte precoce da cria.

"Nunca dê a chance para eles atirarem. Porque eles vão atirar", diz Mary Coleman sobre a polícia. "Pesado" celebra a sobrevivência sem ocultar as contradições que ela implica.

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