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Cinema

Por que Caetano Veloso foi rejeitado pela crítica ao tentar fazer filmes

'O Cinema Falado' é obra sobre o encontro entre pessoas, visões de mundo, artes, discursos, corpos e geografias

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Paulo Santos Lima

[resumo] Entre o erudito, o popular e as experimentações, Caetano Veloso passou a escrever as suas reflexões aos 19 anos, depois partiria para críticas mais aprofundadas e, com o seu 'O Cinema Falado', de 1986, reiterou o que vinha realizando em um filme envolvente, familiar e sensual, promovendo a partir de sua música uma roda livre de sentimentos e de passeios.

Retrato de Caetano Veloso durante as filmagens de 'O Cinema Falado', de 1986
Retrato de Caetano Veloso durante as filmagens de 'O Cinema Falado', de 1986 - Divulgação

Caetano Veloso é o nosso maior artista. Sua criação e seu pensamento têm frequentado há seis décadas vários campos da arte e da história do Brasil. Irreverente, inventivo irrequieto, o seu modo de estar no mundo revela em síntese toda uma condição de país. Uma estética, que é sempre a melhor forma de se espelhar o espírito de uma cultura. Algo que só os grandes artistas —e a grande arte— conseguem alcançar.

Há outros nomes enormes e fundamentais, e alguns estão lembrados nas linhas adiante, mas nenhum passeou melhor e mais radicalmente por campos artísticos tão distintos como Caetano, numa fluidez rara, atuando em música, literatura, debate cultural, cinema e performance.

É o erudito, o popular, a experimentação e a cultura de massa miscigenados num mesmo açude que Caê tem transnadado a braçadas seguras desde seu primeiro mergulho mais profundo no tropicalismo —o disco "Tropicalia ou Panis et Circencis", de 1968, ao lado de Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Tom Zé e Os Mutantes.

O cinema sempre foi algo a priori para ele. Aos 19, já escrevia críticas no jornal Archote, em sua terra natal, Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Nas décadas seguintes, escreveu reflexões mais amplas sobre cultura no Jornal do Brasil e neste jornal.

Os parágrafos até aqui são uma reiteração sobre quem é esse artista, claro, mas sobretudo resposta a quem, com um cunho nada sólido, implica com Caetano. E aí precisamos falar sobre "O Cinema Falado", de 1986, único filme dirigido por ele, e recebido de forma, digamos, "confusa".

"Ela espera que digam o que ela sabe. Para mim, arte é o que não se sabe, mostrar o que não se vê", respondeu Godard sobre uma espectadora que achou seu "Histoire(s) du Cinéma" obscuro. O caso parece similar ao do filme de Caetano, mas não. "O Cinema Falado" reitera tudo o que ele vinha realizando há 20 anos —era assim um filme envolvente, bastante familiar e sensual aos olhos de todos. O que torna, sem exagero, alguns comentários feitos ao filme na época bastante torpes.

Muitos defenderam o filme. E, intuímos, os ataques ferinos surgiram por motivos "passionais", de antipatia à figura leonina de Caetano, sua doce altivez e seu jeito de peitar a mediocridade. Caetano vem, desde ali, defendendo seu filme de um modo muito bonito, porque sincero, e entoado como uma serenata saída de texto escrito ou comentada pela boca do artista. Vale correr à estante ou a uma biblioteca e ir ao capítulo "Sou Pretensioso", em "O Mundo Não É Chato", livro lançado pela Companhia das Letras em 2005 —preciosa organização de textos de Caetano feita por Eucanaã Ferraz—, para entender literalmente o que ele pretendia com seu filme que não um "capricho de um músico arrogante".

"O Cinema Falado" começa de forma clara, senão "didática" a quem o achar obscuro, com Julio Bressane introduzindo que "não por acaso que, em português coloquial, prosa quer dizer conversa, rap, charla, dois dedos de prosa".

Ele está na casa de Caetano, numa festa ao som de Prince e, entre as presenças, Gil, Paula Lavigne, Antonio Cicero, Henfil, Elza Soares, Lulu Santos, Regina Casé, Sidney Magal, Henri Gervaiseau citando Matinas Suzuki Júnior, entre outros. Nem todos reaparecerão, mas emanarão de alguma forma. Porque é um filme de encontro entre pessoas, visões de mundo, artes, discursos, corpos e geografias. Um filme sobre o mundo segundo a música, literatura, cinema e artes plásticas. Um filme de amor.

Caetano põe amigos e artistas para recitar textos à câmera, mas dentro da magia da imagem cinematográfica. Um lindo exemplo é dona Canô cantando "Último Desejo", de Noel Rosa, num perfil de pintura setecentista, e logo ao final ela sorri e altera a natureza daquela performance divina. Ou Paulo Cesar Souza, com seu corpo erotizado pela câmera de Pedro Farkas, recitando "Sobre o Casamento", texto de Thomas Mann sobre o homoerotismo.

Hamilton Vaz Pereira cita trechos de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, não sem antes fazer uma relação com "Kagemusha", de Akira Kurosawa, que passa na TV. É o que Caetano faz na música e na vida.

Há uma teatralidade das falas que não deixa de se relacionar com o mundo real, e por isso veremos a encenação em praias, ruas, salas de apartamento etc. Nisso, teremos Regina Casé numa linha de trem ribeirinha a uma favela ao som de Billie Holiday e reinterpretando um texto de Gertrude Stein. Ou Caetano assoviando o tema de "Il Vitteloni" de Fellini em papo emotivo com seu amigo de infância Dazinho.

Indiscutível que a conversa meio erótica entre Dedé Veloso e Felipe Murray falando sobre o cinema brasileiro e a TV em várias camadas não teria como ser desinteressante para alguns atiçados que estavam naquela pré-estreia de 1986.

Mas a sequência capitular é a do casal nu se amando à forma de "O Pátio", de 1959, primeiro curta de Glauber Rocha. O ator negro recita um poema de Décio Pignatari, ao som de Maria Callas, e ao final leva "o organismo" a "orgasmo", com voz ecoando a palavra na tela. Poesia concreta, que desmonta os trilhos do texto e dá uma outra lógica, inclusive gráfica, às palavras. É o que toda música de Caetano faz, em bossa rítmica, e mesmo todo discurso seu, que tira da ordem para fazer ascender uma outra forma, uma outra sensação, uma descoberta.

Caetano Veloso fazendo 80 anos deveria ser de feriado nacional. Ou, sendo mais justo, o recesso deveria se estender a todas as Américas de baixo e, num sentido literal nada a ver com o de "Qualquer Coisa", para lá de Marrakesh. Afinal, "caetanear", ainda mais o que há de bom, não é para qualquer um.

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