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'Sul & Oeste' de Joan Didion vê contrastes dos EUA em relatos livres

Numa aparente falta de rumo, escritora busca seu lugar na história a partir de viagens por diferentes regiões do país

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Luciana Araujo Marques

Sul & Oeste

  • Preço R$ 49,90 (128 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Joan Didion
  • Editora Harper Collins
  • Tradução Marina Vargas

Pode-se afirmar que "Sul & Oeste" é composto por duas partes. Na primeira, toma-se contato com notas e gravações da perambulação sem rota entre Louisiana, Alabama e Mississippi, no sul dos Estados Unidos, realizada por Joan Didion, morta em 2021, no verão de 1970. Na segunda, há anotações de 1976, quando ela foi a São Francisco com o intuito de cobrir o julgamento de Patty Hearst para a revista Rolling Stone. Nenhuma das reportagens foi escritas.

Ler o livro publicado apenas em 2017, e recém editado no Brasil, como uma justaposição dessas seções, em que nada se separa —e trazem à tona questões sobre raça, classe, conservadorismo —é um trabalho que exige do leitor e pode desanimar quem prima por totalizações e acabamentos.

Foto em preto e branco mostra três mulheres sentadas
Joan Didion (à esq.), com Abigail McCarthy e Quintana Roo, em 1º de setembro de 1977 - Teresa Zabala/The New York Times

Essa unidade a partir do fragmentário, contudo, é seu maior mérito e só alcançado como efeito literário por conta da primazia de um gesto autoral. Na ausência de enredo e na aparente falta de rumo, ou do que se pode intuir de pautas jornalísticas que não se cumpriram, impera o impulso de Didion ao se lançar na na jornada: "Estou tentando encontrar meu lugar na história".

Ao aproximar geografias humanas e físicas tão opostas em situações vividas e testemunhadas nos anos 1970, passado pontual apenas em tese, os escritos de Didion dizem do todo de um país e do que lhe reservaria o futuro. Sobretudo quando se tem em mente a eleição de Donald Trump à presidência em 2016.

É como filha de seu tempo e da tomada de consciência de seu lugar de origem e de gênero, como mulher branca da Califórnia, fotografada em belos vestidos quando menina e contemplada com bolsas de estudos na juventude, sempre por mérito e nunca por razões econômicas, e não a partir de uma perspectiva pseudoneutra e distanciada, que Didion atinge fundo o coletivo e atravessa diferentes espaços e temporalidades.

O reconhecimento da distinção não significa negar certas irmanações, como a constatada em um local bastante simbólico em Winfield —não custa destacar o peso da ironia contido no nome traduzido para o português, campo de vitória. "Na lavanderia não havia hostilidade em relação mim, nem mesmo curiosidade a meu respeito: depois de passar uma tarde de verão naquela estrutura lúgubre e asfixiante, eu tinha sido transportada para um reino onde todas as mulheres eram irmãs no sofrimento."

Um feito desta edição na tradução de Marina Vargas pode ser observado já na capa de "Sul & Oeste". Trata-se da opção pelo "&" que não figura no título original em inglês "South and West".

Esse carácter estabelece uma ligação mercadológica entre as partes e, para quem o lê no Brasil, não deixa de aludir ao elo comercial escravocrata que se lê em "Casa-Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, com sua fábula de "democracia racial". Entre os registros de Didion está esta fala de um proprietário branco de uma estação de rádio étnica: "A chave é a harmonia racial e a educação, e vamos tentar proporcionar ambas as coisas a nossa população, porque viveremos juntos por um longo tempo".

"O futuro sempre parece bom na terra dourada, porque ninguém se lembra do passado." Assim, se há apagamento no oeste em favor do valor propagandeado de igualdade nas oportunidades, no sul não é possível se desvencilhar do passado colonial. A guerra civil, por exemplo, não teve fim à medida que os sulistas ainda reencenam suas batalhas nos locais onde ocorreram.

Em certos lugares, a luta para seguir vivo tem cor, é diária e não se trata de teatro. Porém, são faces de uma mesma moeda que as duas partes desse livro tratam de revelar.

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