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'A Morte de Vivek Oji' narra agruras de jovem não binário na Nigéria

Romance poderoso de Akwaeke Emezi é um drama familiar inspirado em Toni Morrison e García Márquez

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Yasmin Santos

Jornalista, é pós-graduanda em direitos humanos, responsabilidade social e cidadania global

A morte de Vivek Oji

  • Preço R$ 69,90 (80 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria Akwaeke Emezi
  • Editora Todavia

"Queimaram o mercado no dia em que Vivek Oji morreu." É assim que se inicia e encerra o primeiro capítulo do livro de Akwaeke Emezi. A narrativa inverte a ordem do mistério, revelando já em seu título –"A Morte de Vivek Oji"– o fim do protagonista. Com o fato revelado, nos resta descobrir como e por quê.

Vivek é uma pessoa não binária, ou seja, que não se identifica com o binarismo de gênero homem-mulher –condição que é compartilhada com Emezi, que se identifica como ọgbanje, palavra da cultura igbo que se refere a um terceiro gênero. Por sua condição e o prenúncio de sua morte, imaginamos estar diante de uma história sobre fobia dos LGBTQIA+. Não só.

Capa do livro 'A Morte de Vivek Oji', de Akwaeke Emezi
Detalhe de capa do livro 'A Morte de Vivek Oji', de Akwaeke Emezi - Reprodução

Vivek se comporta como um homem diante da família e de outra forma quando está com amigos. Sua morte ocorre com sua feminilidade à mostra numa de suas raras saídas às ruas de Ngwa. No livro, o personagem não se importa de ser tratado pelos pronomes "ele" ou "ela" –talvez uma forma de traduzir o pronome "them" da língua inglesa.

No segundo capítulo, a narrativa apresenta o seio familiar de Vivek por meio de fotos banais e entre cortes abruptos, como se estivessem sendo passadas em um projetor. Nostálgicas, as fotos mostram o toque das mãos, um passeio em família, um menino segurando colares junto ao peito. É um pequeno álbum sobre o luto e o amor que os cercam.

No mesmo dia em que Vivek nasceu, o coração de Ahunna, sua avó paterna, parou de bater. A morte da matriarca instalou uma dor incapacitante ao redor do recém-nascido –e que o acompanhou por toda a vida.

A narrativa avança e retorna, ora sendo guiada por um narrador onisciente, ora por Osita, primo e posterior amante de Vivek. O protagonista narra pequenos capítulos ao longo livro, que mais parecem bilhetes, como alguém que partiu e nunca foi capaz de dizer. Não por acaso, Vivek é quem tem menos espaço para narrar sua própria história em primeira pessoa.

A família assiste ao flerte de Vivek com a feminilidade de forma preocupada. Sua mãe teme que passem a ver o jovem como mulher na rua e, ao descobrirem a verdade, queiram machucar o filho; seu pai prefere dizer que ele sofre de algum distúrbio psicológico. O assunto permanece silenciado. Ninguém nunca perguntou o que Vivek é ou gostaria de ser.

Ele cresce como uma criança incompreendida, se recusa a cortar os cabelos; prefere dormir no quintal, com as galinhas, do que na própria cama; e passa a sofrer espasmos mentais, como se seu cérebro se descolasse da realidade.

Como tantas pessoas LGBTs, seu primeiro contato com o amor acontece fora de casa. Até então o jovem era cuidado e acarinhado pela família, mas nunca foi acolhido e, portanto, amado –aqui, entendemos amor como defendido por bell hooks, como uma prática, não um sentimento.

Na sua rede de apoio, composta de amigos realmente dispostos a ouvir, o jovem deixa de ser a pessoa melancólica que os pais conhecem. Seu corpo se permite dançar, vibrar, gozar; usa vestido, passa batom, penteia o cabelo. Ele é entendido como um ser humano para além de com quem escolhe transar. Ali, Vivek começa a morrer e nasce Nnemdi.

Sua morte física, no entanto, não é fruto de um assassinato, trágico fim de tantas pessoas LGBTQIA+ mundo afora. Morre por acaso, por acidente.

Dois escritores, ambos consagrados com o prêmio Nobel de literatura, inspiraram a estrutura e a condução da história, Gabriel García Márquez e Toni Morrison. Do autor colombiano, Emezi se inspirou no quebra-cabeças narrativo de "Crônica de uma Morte Anunciada". De Morrison, o tom memorialístico que permeia a narrativa de ódio e paixões de "Amor". Tanto Gabo quanto Morrison constam nos agradecimentos finais de Emezi.

"A Morte de Vivek Oji" é um drama familiar em que vida e morte se misturam, uma bela mostra da proeza literária de Akwaeke Emezi.

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