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'Cordialmente Teus' é distopia sobre violência que vai da colônia a 2066

Sem ter tom panfletário, filme de Aimar Labaki usa sutilezas para nos ajudar a entender como país chegou ao bolsonarismo

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São Paulo

Cordialmente Teus

  • Quando Estreia nesta quinta (22)
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Mirian Mehler, Débora Duboc e Agnez Zuliani
  • Produção Brasil, 2022
  • Direção Aimar Labaki

"Cordialmente Teus", filme dirigido e roteirizado por Aimar Labaki, entra em cartaz em um momento apropriado. Nesta quinta-feira (22), faltam dez dias para o primeiro turno das eleições no Brasil.

Não que a produção tenha um tom panfletário. Pelo contrário, as sutilezas narrativas estão entre os seus achados. Autor de longa experiência no teatro e na TV, Labaki faz a sua estreia na direção de cinema apresentando dez episódios ficcionais sobre o país, numa cronologia que se estende de 1566, o Brasil colonial, a 2066, um futuro distópico.

Cena do filme 'Cordialmente Teus', de Aimar Labaki
A atriz Liz Reis em cena do filme 'Cordialmente Teus', de Aimar Labaki - Divulgação


À primeira vista, são histórias sem ligação entre si, mas logo nos damos conta dos fios que as unem. E os pontos de contato são marcas profundas que se perpetuam, geração após geração, por 500 anos —o racismo, a violência, o autoritarismo, a desigualdade social, a educação precária, entre outras máculas.

Por que, afinal, é bom o timing da estreia? Porque o filme mostra, de modo engenhoso, como o bolsonarismo não é um ponto fora da curva na trajetória do país, mas um fenômeno resultante de séculos de intolerância, repressão e patrimonialismo.

Aimar Labaki percorre a história brasileira de um modo particular. Em vez de recorrer a figuras de conhecimento público, ele põe em cena gente comum, que sente o peso dos abusos do seu tempo ou tira proveito das situações adversas.

Em 1618, mãe e filha de origem judaica temem a sanha persecutória da Inquisição. "Não podemos professar a nossa fé em público", diz uma delas. O medo nos olhos das duas dialoga com o horror expresso por uma mulher em outro episódio —em 1998, ela rememora um momento de terrível crueldade ocorrido durante a ditadura militar.

Em 1891, uma viúva e seu funcionário reclamam da República —instalada havia apenas dois anos— e se articulam para preservar os privilégios dos tempos da monarquia. Revelam soberba semelhante à do militar português que, em 1566, fica exasperado diante da resistência dos indígenas à dominação europeia.

O leitor já percebeu que não se trata de um filme leve. Mas Labaki sabe temperar os episódios com passagens cômicas, o que acontece sobretudo na história que abre "Cordialmente Teus", na qual uma mulher vai ao desespero com os juros cobrados por um banco. É um momento luminoso da atriz Débora Duboc.


As interpretações, aliás, são um outro mérito da produção. Enfim, o cinema entrega bons papéis a atores que até hoje só puderam demonstrar o seu talento de modo efetivo no teatro, como Eduardo Silva e Thaia Perez.

No episódio que se passa em 2066, uma mulher negra, vivida por Taty Godoi, violentada por não se submeter a uma crescente disparidade social, dá o seu recado sobre o que vê como uma sina do país —"estamos sempre começando, a gente nunca termina".

É esse Brasil incompleto que Aimar Labaki se propõe a retratar no filme. E não poderia haver momento mais propício para ver isso do que agora.

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