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Nova onda de livros mostra mulheres marcadas por ódio e raiva ao longo de gerações

Escritoras brasileiras Jarid Arraes, Vanessa Passos e Aline Motta abordam como a violência se reproduz por dentro das famílias

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desenho a lápis de duas mulheres negras, uma de frente e outra de perfil

Ilustração de capa feita por Eduarda Moiano para o livro 'A Filha Primitiva', publicado por Vanessa Passos na editora José Olympio Eduarda Moiano/Divulgação

São Paulo

A mulher que narra "A Filha Primitiva" desabafa que perdeu a conta de quantas vezes sua mãe telefonava para ela por dia, "pra falar que ainda dava tempo". "Que era pra eu acordar e começar a buscar uma salvação pra desgraça que marcou a vida dela e a minha. Que essa mesma desgraça não marcasse também a vida da menina."

A garota ostenta uma visão da maternidade mergulhada em ódio e pesar, como se vê em outro trecho adiante. "Não foi o parto, não; não foi a contração, não; não foi dar o peito, não; foi a raiva que me tornou mãe."

Vanessa Passos constrói este seu primeiro romance, destacado no prêmio Kindle e publicado pela José Olympio, a partir da fúria legada de geração em geração numa família de mulheres marcadas pela brutalidade do passado e temerosas da ausência de futuro.

Não é o único livro com sensibilidade assim. Despontam na literatura reflexões sobre a reprodução da violência e do trauma dentro nas famílias brasileiras, pensando como pessoas que sofreram abuso se tornam abusivas e navegando o equilíbrio inescapável de ódio e afeto que complica essas relações.

"A raiva dá o tom do livro", diz Passos, escritora de 29 anos com doutorado em literatura pela Universidade Federal do Ceará. "São mulheres complexas, nunca nomeadas, que sofrem as mesmas violências e reagem de formas diferentes. A avó apaga a si mesma e fica apegada à fé. A mãe se ampara na automutilação e no ódio."

Curioso que uma abordagem de notas parecidas surja no romance de estreia de outro nome em ascensão na literatura brasileira, Jarid Arraes, já célebre por suas coletâneas de contos e poemas.

"Corpo Desfeito" retrata três mulheres da mesma família afogadas sob o jugo da violência doméstica —tanto por parte de homens brutamontes quanto de uma contra a outra. A escritora, nascida no Ceará há 31 anos, lembra um ditado que funcionaria bem como epígrafe de seu livro. "Pessoas traumatizadas traumatizam pessoas."

A avó da protagonista Amanda sofre com um marido que alterna entre o sumiço e a agressividade. Tanto o algoz quanto a vítima descontam suas frustrações nas outras mulheres da casa, o que ganha contornos demoníacos quando a neta passa a ser alvo de um controle rígido e fundamentalista de sua avó.

O romance surgiu, segundo Arraes, da vontade de pensar como o abuso contra crianças é naturalizado e rotineiro. "É uma violência muito aceita socialmente, uma mentalidade de punição física e psicológica como método de educação. Uma mãe que bate no filho provavelmente apanhou dos pais, assim como os avós. É muito difícil romper esse ciclo."

Se não aceitamos violência de gênero, completa ela, não há por que achar razoável agredir crianças —ambos são abusos covardes de hierarquia de poder. "Isso está enraizado na forma como aprendemos o que é autoridade. Ela é tão confundida com violência que até me questiono se é possível existir uma sem a outra."

As histórias se filiam a uma tendência avassaladora da ficção contemporânea que desmonta a ideia de que mães são poços de amor ilimitado. Mas suas propostas vão além, tecendo uma corrente trágica de mulheres lesadas desde a ancestralidade.

Aqui vale trazer outra autora de originalidade notável, que se aproxima dessas reflexões por ângulo distinto. "A Água É uma Máquina do Tempo", estreia literária da pesquisadora e artista visual Aline Motta, é um livro de poemas —por falta de expressão melhor.

A autora parte de uma investigação rigorosa sobre suas próprias ancestrais para costurar 144 páginas que mesclam versos, documentos antigos, fotografias, mapas e anotações à mão —compondo um todo que, se não busca ser coeso, tem completa coerência afetiva e intelectual.

"Deixou um rastro de leite e sangue", escreve Motta, já na primeira frase sobre a mãe de sua bisavó. A história real de Ambrosina se mistura aos poucos à de suas herdeiras e da autora, num passado que nunca se desgarra do presente.

Motta define seu trabalho como um jogo que vai da história de proporções coletivas para as micro-histórias pessoais. "Na minha pesquisa, dá para ver muitas histórias sendo repetidas e repetidas. Quem é capaz de quebrar esse ciclo de violência histórica, que acaba tendo dimensões políticas e econômicas? É possível fazer isso?"

A abordagem de Motta impressiona pelo lirismo. "Como posso distinguir os despojos dessa mãe dos restos das outras?", anota a escritora. "Te machucar era uma forma de não ser ignorada", deixa ela como frase solitária em outra página em branco. O livro se assombra o tempo todo pelo grande vazio do passado, num exercício que lembra, por exemplo, a literatura inclassificável de Saidiya Hartman.

Em "A Filha Primitiva", Vanessa Passos também mostra sua protagonista buscando preencher o vácuo de suas origens mesmo intuindo que dali só devem sair novos traumas. A própria autora diz que não faz muito tempo que "teve o espanto" de se descobrir negra, após superar o que vê como um longo processo de branqueamento.

Não é coincidência que todas as obras —e todas essas mulheres— sejam marcadas de forma mais ou menos ostensiva pela questão racial, o que aponta para a violência fundamental, ainda presente, de um país erguido em estrutura racista e misógina.

"Muitas vezes ter um passado é um privilégio de classe", diz Passos. "E esse silêncio todo é algo que fomenta a violência."

Se a literatura pode integrar o esforço de quebrar esse ciclo perverso, Jarid Arraes lista outras medidas mais cotidianas ao comentar a gênese de seu romance. Lembra quando, aos 13 anos, ligou de um orelhão para o conselho tutelar da cidade para denunciar um caso de violência na sua família. Nada aconteceu, mas a postura da autora pouco mudou desde então.

"O mais complicado é a omissão de quem sabe e não faz nada. Quanto mais grave a situação, mais difícil tomar conhecimento dela. A gente pode cair na tentação de justificar, principalmente quando amamos as pessoas, mas precisamos aprender a interferir. Mesmo que seja desconfortável."

A Filha Primitiva

  • Preço R$ 44,90 (176 págs.)
  • Autor Vanessa Passos
  • Editora José Olympio

Corpo Desfeito

  • Preço R$ 49,90 (128 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autor Jarid Arraes
  • Editora Alfaguara

A Água É uma Máquina do Tempo

  • Preço R$ 62,90 (144 págs.)
  • Autor Aline Motta
  • Editora Luna Parque e Fósforo
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