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Livros

Annie Ernaux dispensa pudores ao unir vida e escrita pela ficção

Autora que venceu o Nobel prefere o vivido à imaginação, mas o que impressiona é como dá forma aos fatos e às emoções

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Eurídice Figueiredo

Professora da pós-graduação em estudos de literatura da Universidade Federal Fluminense e autora de 'A Nebulosa do (Auto)biográfico: Vidas Vividas, Vidas Escritas'

Rio de Janeiro

A obra literária de Annie Ernaux, que venceu o Nobel de Literatura nesta quinta, tem várias formas: romances, relatos autobiográficos, às vezes com fotos, e diários. Seus três primeiros livros são romances autobiográficos porque, no momento em que começou a escrever, parecia a ela que literatura era sinônimo de ficção, portanto, de romance.

Após a morte de seu pai, tentou escrever sobre ele na forma ficcional, o que soou falso; optou pelo relato mais objetivo e próximo do real que resultou em "O Lugar". Este é o ponto de virada em seu trajeto porque a partir daí ela abandonou totalmente a ficção e passou a ter uma escrita enxuta, sem metáforas, sem ornamentos, que ela chamou de "escrita plana" e que poderíamos associar à escrita branca de Roland Barthes.

A escritora francesa Annie Ernaux, vencedora do Nobel - Pierre Guillaud - 12.nov.1984/AFP

Ao escrever sobre o pai, um homem sem cultura, que empregava uma linguagem tosca, popular, ela exprime a distância que percorrera ao se tornar professora e fazer um casamento burguês. Virou uma trânsfuga de classe, na expressão de Pierre Bourdieu, a pessoa que sofre devido a sentimentos conflitantes em relação à sua origem —vergonha, culpa, remorso.

O projeto literário de Annie Ernaux é bastante original porque ela não segue o paradigma da autobiografia clássica, que consiste em contar a sua vida, reconstituindo a genealogia e atravessando os grandes acontecimentos.

Esse modelo, como afirma Serge Doubrovsky, o criador da autoficção, é reservado aos grandes homens. Ernaux, ao contrário, destaca, em cada livro, um fato vivido e explora as emoções envolvidas naquele acontecimento, seja um aborto, uma paixão, a relação com os pais.

Ela considera que não faz autoficção, como alguns críticos chegaram a afirmar, mas relatos autosociobiográficos, que não são narcísicos, girando em torno do próprio umbigo, mas antes relatos que têm um fundo etnográfico.

Ela diz: "Não procuro me escrever: sirvo-me dos eventos, geralmente banais, que me atravessaram, situações e sentimentos que conheci, como matéria a ser explorada. Tenho a impressão de sempre ter escrito de mim e fora de mim". Se Kafka dizia que o livro devia ser um machado que quebra o gelo em nós, Ernaux afirma que sua escrita é como uma faca.

Em "O Acontecimento" ela narra o aborto clandestino a que se submeteu em 1963, aos 23 anos, quando era estudante universitária em Rouen. A gravidez e o aborto, que apareciam em seu primeiro romance, "Les Armoires Vides", ou os armários vazios, como marca de degradação, adquirem um sentido mais positivo quando narrados anos depois.

Numa descrição clínica, seca, a autora tenta resgatar aquela jovem do passado e vê, em sua decisão, um ato iniciático em que rompe com as amarras que a prendiam àquele mundo pequeno-burguês.

O livro "Os Anos" se afasta desse modelo; é uma narrativa geracional, em que os pequenos fatos de sua vida particular —namoro, casamento, nascimento dos filhos, primeiros empregos, primeiros livros— se enlaçam aos grandes acontecimentos sociais e políticos da França e do mundo: o pós-guerra, o fim do colonialismo francês, o Maio de 68, a revolução de costumes.

Cada uma dessas décadas e etapas de vida tem suas fotos: o ato de olhar as fotos funciona como detonador da memória da personagem-narradora, de avaliação do passado, dos afetos envolvidos. Sua linguagem, por isso, se aproxima muito mais da forma romanesca, embora os outros livros também tenham uma forma bastante próxima do romance.

Essa ambiguidade tem a ver com o caráter da escrita literária e sua relação com o conceito de ficção. Ernaux não quer usar a imaginação e sim o vivido, mas ainda assim tem de organizar o material e dar uma forma a ele.

Ela distingue dois sentidos para ficção: "Em seu sentido tradicional de imaginação de fatos, de personagens, a ficção efetivamente não tem lugar no que escrevo, mas, em seu outro sentido, de construção, de agenciamento formal, esse lugar é imenso. Meu diário de escrita, "L’Atelier Noir" [o ateliê negro, não publicado no Brasil], dolorosamente é testemunha disso".

É interessante comparar as narrativas com os diários escritos à época dos acontecimentos que as inspiraram e perceber a distância existente entre a anotação do diário, de forma fragmentária, e o caráter construído do texto narrativo, que se apropria das técnicas do romance, condensa e intensifica.

"Se Perdre", ou perder-se, e "Je Ne Suis Pas Sortie de Ma Nuit", não saí de minha noite, ambos ainda inéditos no Brasil, são reproduções de trechos de seu diário que cobrem os acontecimentos retratados, respectivamente, em "Paixão Simples" e "Une Femme".

A produção literária de Ernaux pode ser considerada o epítome da experiência autobiográfica na contemporaneidade, uma obra que expõe a vida íntima da autora sem pudor, numa perspectiva feminista.

Ela encena o amor livre em público, mostrando a obra que se faz no presente, num jogo autorreferencial em que a escritora vive e escreve. As duas atividades não se excluem, não são antagônicas: vida e escrita estão intimamente conectadas, sem perder a dimensão imaginária que é própria da linguagem.

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