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Reinaldo José Lopes

Brasil Paralelo distorce obras de Lewis, Tolkien e Chesterton em série

'Guerra do Imaginário' não tem honestidade intelectual para apontar suposto domínio cultural da esquerda

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São Carlos (SP)

"Guerra do Imaginário", série documental com três episódios lançada pela plataforma de streaming Brasil Paralelo, apresenta resumos competentes da trajetória de três gigantes do mundo literário britânico dos séculos 19 e 20: G.K. Chesterton, C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien.

Sem o trio, a literatura de fantasia moderna provavelmente não existiria, e os episódios desenham um bom quadro geral de sua vida e obra. O diabo, porém, mora nos detalhes. Na série, os contornos e a moldura desse quadro estão distorcidos.

Os escritores G.K. Chesterton, C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien em material de divulgação da série 'Guerra do Imaginário', da Brasil Paralelo
Os escritores G.K. Chesterton, C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien em material de divulgação da série 'Guerra do Imaginário', da Brasil Paralelo - Divulgação

Ideologicamente afinada com o bolsonarismo e o olavismo, a produtora se notabilizou pela produção de documentários como "Brasil: A Última Cruzada", nos quais se propõe a combater uma suposta doutrinação da esquerda no ensino de história no país. A ideia seria revalorizar os aspectos heroicos da trajetória brasileira.

Naquela série, erros factuais graves e o pesado viés ideológico eram disfarçados pelo capricho da produção. A intensidade desses problemas diminui bastante em "Guerra do Imaginário", mas ainda assim o espectador atento é capaz de perceber distorções históricas importantes e uma tentativa de retratar os biografados de forma unidimensional.

Isso começa, é claro, com a moldura trazida pelo título da série dirigida por Guilherme Freire. Ocorre que Chesterton, Lewis e Tolkien se tornaram ícones do conservadorismo cristão no mundo de língua inglesa —e, bem mais recentemente, entre bolsolavistas no Brasil—, embora a influência dos autores vá muito além desse meio. O engajamento de tais grupos numa guerra cultural contra a esquerda os leva a alistar o trio nos batalhões desse combate —o que nem sempre funciona.

A patente de guerreiro do imaginário talvez seja mais apropriada no caso de Chesterton, que se notabilizou como polemista e satirizava com habilidade singular figuras antirreligiosas como o dramaturgo George Bernard Shaw e o escritor de ficção científica H.G. Wells.

A verve de Chesterton foi crucial para retratar a fé cristã como uma opção intelectualmente justificável num mundo cada vez mais secularizado, um caminho que seria, em parte, adotado por C.S. Lewis em obras como "Cristianismo Puro e Simples".

Lewis, porém, é muito mais teólogo popular do que polemista, sem falar no seu interesse em transfigurar os elementos da fé cristã em forma narrativa por meio da ficção científica, com sua "Trilogia Cósmica". e da fantasia, com "As Crônicas de Nárnia". Quanto a Tolkien, autor de "O Senhor dos Anéis", é difícil imaginar alguém menos afeito ao debate público e às polêmicas.

De qualquer modo, o relativo anacronismo de retratá-los como guerreiros culturais é um problema menor diante das omissões e distorções sobre a vida e obra dos autores, em especial no caso de Lewis e Tolkien.

No episódio sobre Tolkien, a narrativa cita de passagem a paixão do autor pelas árvores, mas evita mencionar a condenação irada do desmatamento que ele faz em uma de suas cartas. "O som selvagem da motosserra nunca silencia onde quer que árvores ainda sejam encontradas crescendo", escreve o autor, que também costumava chamar os motores que usam combustíveis fósseis de "motores de combustão infernal" e criou os seres conhecidos como Ents como uma espécie de vingadores das florestas acuadas em sua Terra-média.

A maneira como o episódio sobre Lewis descreve as implicações de sua "Trilogia Cósmica" também não prima pela precisão —ou, talvez, pela honestidade intelectual. Ao discutir o último livro da série, um dos entrevistados diz que a trama da obra gira em torno de "um instituto de ciência que toma o poder no mundo, para dizer o que deve ser a sociedade, destruindo a religião". É difícil não ouvir os ecos dos protestos anticiência durante a atual pandemia.

A afirmação, porém, deixa de lado o fato de que os vilões "científicos" do livro na verdade são satanistas que tentam dar um verniz científico a uma ideologia desumana, e que um dos heróis que se opõem a eles é um agnóstico e cético radical, uma espécie de Carl Sagan dos anos 1940, inspirado num antigo professor de Lewis.

Por fim, é difícil não engasgar quando o narrador da série diz, com toda a pachorra do mundo: "As visões utópicas e os valores materialistas denunciados por Lewis na 'Trilogia Cósmica' foram responsáveis por eclodir mais uma Grande Guerra", em referência a Segunda Guerra Mundial.

Como diria Luke Skywalker, cada uma das palavras desta frase está errada. O antissemitismo de Hitler — uma bricolagem insana de preconceito milenar contra os judeus, alimentado e aceito por muitos cristãos, com misticismo pagão— aparentemente não teve nada a ver com a gênese da Segunda Guerra Mundial. O mesmo parece valer para o estado deplorável da economia alemã após a Grande Depressão. Então tá.

Guerra do Imaginário - A Jornada de Chesterton, Lewis e Tolkien

  • Quando Já disponível no Brasil Paralelo
  • Produção Brasil, 2022
  • Direção Guilherme Freire
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