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Iñárritu encara seus críticos e alfineta os EUA em 'Bardo', destaque da Mostra de SP

Cineasta mexicano brinca com pecha de pretensioso em fantasia autobiográfica que o põe em crise com sua própria identidade

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Daniel Gimènez Cacho em cena do filme

Daniel Gimènez Cacho em cena do filme "Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades", de Alejandro G. Iñárritu Divulgação

São Paulo

Deitada sobre uma cama hospitalar, uma mulher aguarda para aninhar o bebê que acabou de parir. Ao fundo, médicos o examinam, viram e reviram, e selam seu destino —ele quer voltar, achou o mundo horrível. E, assim, eles põem a criança de volta entre as pernas da mãe, que revive a dor do parto em meio à incompreensão.

Incompreensão essa que contamina o público ao longo das quase três horas de "Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades", que logo depois põe a personagem para andar pelos corredores hospitalares arrastando um enorme e ensanguentado cordão umbilical. O filme é um dos destaques da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que exibe mais de 200 títulos entre esta quinta e o dia 2 de novembro.

Por mais absurdas que cenas como a do parto reverso sejam, "Bardo" tem um fundo de verdade. É a obra mais pessoal de Alejandro González Iñárritu, mexicano vencedor de quatro estatuetas do Oscar, por "O Regresso" e "Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)", que pôs várias de suas experiências de vida no trem desgovernado que parece ser este seu primeiro filme em sete anos.

A ela se juntam passagens como a de um vagão transformado em aquário de axolotes e uma coreografia enlouquecida para "Let’s Dance", de David Bowie, que rompe inadvertidamente o som dos trompetes de uma festa regada a cancioneiro popular mexicano.

"É como cinema líquido, é um filme que não tem estrutura, ordem cronológica ou lógica. Como dizia Buñuel, um filme é como um sonho sendo dirigido, e ‘Bardo’ é isso. O único centro gravitacional dele é a emoção. Não no sentido de ser doido ou alucinatório, ele só é um tanto incomum", diz Iñárritu, em conversa por vídeo.

"Minha intenção era ser honesto com as emoções, criar uma autoficção íntima. Como um dos personagens diz, as memórias não têm verdade, elas têm convicção emocional."

Primeiro filme de Iñárritu gravado no México desde "Amores Brutos", de 2000, o projeto é mais um a escavar as memórias e a intimidade de seu diretor, como Steven Spielberg e Kenneth Branagh fizeram recentemente com "The Fabelmans" e "Belfast", nesta ordem, e seu compatriota Alfonso Cuarón fez há quatro anos, com "Roma".

A cena do bebê, por exemplo, remete à perda pessoal de um filho e dá início a uma série de coincidências propositais entre vida e obra, da recepção calorosa nos círculos artísticos americanos à saudade da terra natal.

Marcado para chegar à Netflix em dezembro e em algumas salas antes disso, em novembro, "Bardo" acompanha um jornalista que passa a fazer documentários. Aclamado pelo trabalho, ele é anunciado como o primeiro latino-americano a receber um importante prêmio de imprensa em Los Angeles.

Tempo e espaço, então, se confundem. Uma hora seus filhos são crianças e, na cena imediatamente seguinte, já estão grandes, se rebelando contra os pais. Nesse ínterim, 20 anos se passam, e a família do protagonista já não mora mais no México, mas nos Estados Unidos.

Pai, mãe, filho e filha replicam a estrutura familiar do próprio Iñárritu, que perseguiu o sonho americano em Hollywood há duas décadas. A mudança é motivo de conflito para os personagens e, mais uma vez, para o próprio cineasta, que vem dizendo que "migrar é morrer um pouco".

"Você se integra a uma nova cultura e, com isso, se desintegra de outra. Nos 21 anos em que estive fora do México, a cidade da qual saí deixou de existir, as pessoas deixaram de existir. Hoje eu tenho a sensação de ter uma identidade quebrada."

Mas não é como se "Bardo" fosse uma tentativa de reconciliação com suas raízes. Ele nunca brigou com elas, diz, e vai ao México com frequência. Há em "Bardo", no entanto, conflitos de um alter ego hesitante em relação a qual mundo pertence.

Numa cena, ao passar pela imigração americana de um aeroporto, o protagonista ouve de um agente que não pode chamar aquele país de lar, o que o deixa absolutamente ofendido. Por outro lado, lida constantemente com as piadinhas dos irmãos e amigos, que alegam que ele abandonou sua terra natal.

Há uma animosidade entre México e Estados Unidos, constantemente cutucados pelo cineasta ao longo de "Bardo". A relação de amor e ódio é explorada pela ótica migratória, pela desigualdade social e até num noticiário absurdo que, ao fundo dos personagens, anuncia que a Amazon vai comprar o estado da Baixa Califórnia.

E há ainda o momento em que Iñárritu recria a Guerra Mexicano-Americana, que cineasta e protagonista frisam, em entrevista e em cena, se tratar de uma invasão covarde, um massacre do qual os americanos convenientemente se esqueceram.

Tantos assuntos são embrulhados na mais latino-americana das expressões artísticas, o realismo mágico, com García Márquez sendo uma inspiração confessa para Iñárritu, que ainda bebeu da fonte de Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Chegar perto dos escritores e, mais, olhar com tanta grandiosidade para sua própria trajetória engolfaram "Bardo" numa rede de alfinetadas.

Do Festival de Veneza, onde foi exibido, o longa saiu com as críticas de que seria prepotente e autoindulgente. É curioso que seja com essas mesmas palavras que vários personagens se referem ao protagonista interpretado por Daniel Giménez Cacho. Iñárritu preferiria uma recepção mais calorosa, é claro, mas não deixa de ver certo êxito nas reações adversas.

"Eu fiz esse filme rindo de mim mesmo e, então, extraíram essas palavras da trama e as usaram na vida real. Isso reafirma o quão previsíveis nós somos. Eu mesmo escrevi essas críticas para mim, isso só comprova quão preciso o filme é", diz o mexicano, sem esconder certa vaidade. "Eu pus isso na trama não por proteção, mas por recepção, para estar aberto ao que os outros têm a dizer."

Há um último tema sobre o qual "Bardo" se debruça, lá para o final, e que também vem ocupando espaço na mente de seu diretor. Prestes a fazer 60 anos, ele diz que mudou sua percepção sobre vida e obra, porque agora se sente mais próximo da morte.

"‘Bardo’ é um exercício no qual eu imagino minha última jornada", ele resume, dizendo não saber quando estará pronto para dirigir novamente.

Cena do filme "O Show Deve Continuar", ou "All That Jazz", de Bob Fosse
Cena do filme "O Show Deve Continuar", ou "All That Jazz", de Bob Fosse - Divulgação

Parece preocupação excessiva para alguém de sua idade, mas Iñárritu vem repetindo o discurso, e o tom conclusivo da trama se assemelha ao de "O Show Deve Continuar", ou "All That Jazz", um adeus musical e enérgico que Bob Fosse dedicou a si mesmo quando também estava na casa dos 50 anos.

Por ora, Iñárritu compara o sentimento à sensação de estar saciado após uma refeição farta. Perguntam a você o que há para o jantar e você já não consegue mais pensar em comida. Mas ele deixa escapar certa ansiedade ao dizer que, ao longo de toda a carreira, foram os filmes que o procuraram, não o contrário.

Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades

  • Quando Exibido na Mostra de Cinema de SP em 23/10, às 21h10, no Cinesesc, e nos dias 31/10 e 2/11, às 20h45, no Cine Marquise. R$ 30. Estreia nos cinemas em 17/11 e na Netflix em 16/12
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Daniel Giménez Cacho, Griselda Siciliani e Íker Sánchez Solano
  • Produção México, 2022
  • Direção Alejandro G. Iñárritu

46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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